segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Belém do Pará ou Mairi Tupinambá

por Aldrin Moura de Figueiredo
Universidade Federal do Pará


Nos fins do século XIX, aparecem muitas gravuras do porto de Belém, praticamente todas baseadas nos desenhos e pinturas feitas por Giuseppe Leone Righini, que viveu em Belém entre 1867 e 1884, quando aqui faleceu. Essa que mostro aqui foi gravada em Lisboa pela editora luso-paraense de Eduardo Tavares Cardoso, que era um aficcionado no assunto. Em vários desenhos da livraria ele mostra visualmente uma disputa de versões, um casal Tupinambá em gravura antiga e um casal tupinambá em bibelô com cena romântica estilo Vista Alegre ou Vieira de Castro. Mimos pro aniversário de Belém. Belém do Pará ou Mairi Tupinambá completa 409 anos. Belém é a mais antiga cidade em toda a Amazônia, o resto é lenda. Tem Brasão e tem memória. Não sabíamos, no entanto, dessa data até a primeira década do século XX, porém desde o fim do século XIX, historiadores e diplomatas reviraram os arquivos brasileiros e europeus até encontrarem esse 12 de janeiro de 1616. Diversos nomes podem ser lembrados nessa proeza, mas os mais importantes são o Barão do Rio Branco que encorajou e financiou as pesquisas, Manoel Barata que organizou a documentação, e Theodoro Braga que deu cor ao tema diversas vezes. Antes disso, o Brasão d´Armas de Santa Maria de Belém era a grande questão. Era tradição europeia fincar o padrão em velhas e novas terras. Nossos ônibus, os retratos dos prefeitos, nosso carnê de IPTU, tudo isso vem adornado com esse brasão. Trata-se de uma proeza da heráldica. O mito de origem está na primeira versão desse emblema, feito por Bento Maciel Parente (1567-1642), capitão-mor do Pará entre 1621 e 1626. Perdido, a notícia desse escudo ficou guardada na biblioteca do Antigo Convento do Carmo em Braga, Portugal. Em 1825, o gosto pelas marcas da nobreza nos registros da história, caro aos intelectuais do romantismo brasileiro, levou Paulo José da Silva Gama, barão de Bajé (1779-1826), a mandar reproduzir em tela a descrição do brasão. 

No final do século XIX, vários artistas e intelectuais se debruçaram sobre essa peça, entre eles o próprio Theodoro Braga e, antes dele, o francês Maurice Blaise (1868-1945), que atuou como artista e professor de desenho na última década do século XIX em Belém, cuja pintura hoje adorna a sala do prefeito. Grosso modo, trata-se de um brasão esquartelado e tudo nele o liga ao Velho Mundo e tenta-se apagar o passado indígena da cidade Tupinambá: O primeiro quarto, em azul, ostenta os braços com flores e frutas e a legenda Ver est aeternum – Tutius latent, alusivos à natureza do rio Amazonas e à geografia escondida do rio Tocantins. 


O segundo, um castelo de prata com um colar de pérolas, distintivo da nobreza, do qual pende a quina portuguesa com cinco castelos de ouro em escudo azul, enfatizando a fidalguia de Castelo Branco, o fundador da cidade. A estrada em amarelo que dá acesso ao castelo alui o caminho que devem seguir os sucessos do herói da tela – o da obediência à Coroa de Portugal. 

O terceiro representa um sol-poente em céu prateado, referindo a hora em que Castelo Branco ancorou na baia do Guajará. A legenda Rectior cum retrogradus, indica que o comandante esperou o desembarque para o dia seguinte. O quarto traz os ícones de um boi e uma mula num prado verde à margem de um rio, com as divisas Nequancam minima es, em alusão a Belém da Judéia, inspiradora do nome da futura capital do Pará, da qual dissera o profeta que não seria a menor de todas. 

Porém, esse brasão ajudou a esconder outra memória: a Belém Tupinambá, da qual ultimamente se fala mais, e eu tenho parte nessa história, a partir da publicação de um artigo “Mairi dos Tupinambá e Belém dos Portugueses: encontro e confronto de memórias. In: Maria de Nazaré Sarges; Aldrin Moura de Figueiredo; Maria Adelina Amorim. (Org.). O imenso Portugal: estudos luso-amazônicos. Belém: UFPA; Cátedra João Lúcio de Azevedo, 2019, p. 19-41, e mais recentemente “Um brasão português em terra indígena: representações visuais e literárias da Feliz Lusitânia e da Mairi Tupinambá na Amazônia entre o final do século XIX e o início do século XX. In: Maria João Neto; Marize Malta. (Org.). Coleções de arte em Portugal e no Brasil nos séculos XIX e XX. Modus operandi.. Lisboa: Caleidoscópio, 2023, p. 259-270”. Embora ao longo tempo os Tupinambá estivessem em tudo, na comida, no bibelô e na aparelhagem do tecnobrega, não se atinava sobre a necessidade de se recuperar esse passado ancestral. Um desatino claramente político. Antes da chegada dos portugueses em janeiro de 1616, os Tupinambá chamavam de Mairi ao local onde hoje está o núcleo urbano de Belém. O antropólogo Manuel Nunes Pereira (1892-1985) registrou no seu compêndio de narrativas indígenas Moronguetá, que os índios do Rio Negro, na primeira metade do século XX, guardaram na memória um nome que vinha desde os tempos coloniais – Mairi. O termo já havia sido registrado em outros compêndios e vocabulários amazônicos. Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres (1790-1852), registrou, no seu Poranduba Maranhense, Mairy, como “cidade”, e mairy-goara ou mariguara, como “cidadão”, isso recolhido em Belém em 1813 por meio de documentos e relatos orais, num tempo em que se começavam a construir as corografias urbanas, espécie de geografias históricas do Brasil. O conde Ermano Stradelli (1852-1926),conhecido folclorista, fotógrafo viajante ítalo-brasileiro, que realizou expedições à Amazônia nas últimas décadas do século XIX, recolhendo relatos de mitos dos povos indígenas, em especial entre os Uanana, anotou o termo Mairi, no vernáculo nheengatu, como sendo “cidade”, e seus habitantes como “mairiuára” e “mairipora”. O médico manauara Alfredo Augusto da Matta (1870-1954), por sua vez, no seu Vocabulário amazonense, dá ao termo Mairi o significado de “velha”. Ancestralidade não lhe falta em memória e identidade. Parabéns Belém, pelos 409 anos. Não paro por aqui. Mairi está agora em toda parte e isso é muito bom.

*Este texto também foi publicado nas redes sociais do autor.