segunda-feira, 30 de julho de 2018

Belém e os urubus: entre sobressaltos e gratidão, as representações do urubu em favor de políticas de higienização da cidade (1870-1883)

por Wendell P. Machado Cordovil*

Urubu sobrevoando
Eu logo pude prever
Parece que vai chover
Parece que vai chover[i]

A cidade de Belém, capital do Estado do Pará, é o segundo município mais populoso da região Norte do Brasil e o primeiro do Estado- segundo dados do IBGE de 2017. Com uma história que remonta desde o período colonial, Belém viveu diferentes continuidades e rupturas para a construção do que hoje é a cidade. Nesses processos históricos, as relações dos moradores da cidade não são construídas exclusivamente com humanos. Para além desses personagens a história da região também é construída com os rios e lagos, com os alimentos importados e exportados, com as árvores e as florestas, e também com animais não humanos.

Um dos personagens não humanos que pode ser observado ao longo dos processos históricos em Belém é o urubu. Essa ave muitas vezes está associada ao agouro – não tanto quanto a coruja branca – mas também é bastante utilizado como ferramenta meteorológica. O voo baixo do urubu de cabeça preta é realizado quando esse encontra correntes de ar ascendente, indício que o ar quente está subindo e consequentemente as chuvas podem iniciar.

Nos dias atuais a presença do urubu pela cidade é algo natural aos olhos. Tanto daqueles que frequentam o Ver-o-Peso para almoçar, dos pescadores que atracam seus barcos no cais, ou mesmo os que somente passam de ônibus pelo local. Visão comum também em vários pontos da cidade em que se acumula lixo descartado de forma errada, ou mesmo na Praça Batista Campus descansando ao lado das garças. O urubu de cabeça preta, “apelidado” pelos cientistas de Coragyps Atratus, é uma figura emblemática no convívio cotidiano da cidade de Belém. Repugnados por alguns que visitam a cidade a passeio, compreendidos por poucos, e ignorados por outros, os urubus fazem parte das relações rotineiras em Belém, quer queiram os humanos quer não.

Esse voador sujeito emblemático não é realidade somente atual na paisagem e vivência da cidade. Diversas representações feitas de Belém apresentam essa ave como um dos personagens locais.

Um exemplo disso é a música que iniciou esse texto. Composição da cantora regional Dona Onete, a música retrata justamente a presença desse animal na realidade do dia a dia em Belém. Na música, retratado como o malandro namorado da garça, o compadre urubu foi passear para a região do Marajó. Na ilha, ele poderia comer de tudo, mas vivia triste. Quando questionado por outro urubu sobre o motivo para a tristeza, respondeu que estava com saudade de sua branca – sua namorada garça – e também do Ver-o-Peso, além da “sacanagem”. Ainda acrescenta que em Belém ele é um “pop star” e fica bem nas fotos, entrevistas e reportagens. Tudo isso “No meio do pitiú”.

A representação do urubu não se atém somente na música regional atual, a significação da figura dessa ave também aparece em representações da cidade em séculos anteriores. No século XIX, por exemplo, o pintor Joseph Léon Righini se fixa no Brasil em 1857 e desenha um álbum com doze litografias do Pará. Intitulado “Panorama do Pará em Doze Vistas”, foi publicado em 1967. Nessas vistas do pintor sobre o Pará, mais especificamente Belém, um dos personagens que bastante aparece é o urubu. Nos desenhos, o animal observa do céu as pessoas, edifícios e vegetação representadas por Righini.

Estrada do Arsenal da Marinha. Desenho de Joseph Léon Righini.
Fonte: http://www.ufpa.br/cma/imagenscma.html

A imagem acima é um exemplo onde é possível perceber a presença das aves sobrevoando no céu da cidade de Belém.  No século XIX essa ave também já era habitual para os moradores. Em alguns momentos era tida como problema, em outros como a salvação. Na lógica de higienização de Belém no século XIX, como é comentado por Tunai Almeida (2013), já se apresentava a preocupação do Conselho Municipal com o descarte incorreto de cadáveres de animais ou qualquer tipo de carne deteriorada em locais que não fossem os estipulados pela municipalidade. Entretanto, como também é comentado por Tunai, o enterro de animais acontecia bastante em locais desapropriados, algo que incomodava moradores que posteriormente realizavam denúncias. Essa situação de enterro em locais não próprios já se mostrava um incômodo, mas e quando o animal não possuía alguém que se dispusesse de lhe cavar uma devida cova? Suas carnes ficavam expostas entre as ruas de Belém, e essa era uma reclamação que, pelo que as fontes indicam, se fazia bastante presente no período. Com a negligência da gestão local sobre esses casos, a figura que aparece como salvação para a higiene é o urubu.

 Com uma investigação nos jornais de 1870 à 1899, foi possível perceber um pouco dessa preocupação local dos moradores sobre os animais mortos que apareciam em diferentes ruas de Belém. Incômodo que era acentuado pela falta de reação da gestão da cidade em tentar solucionar esse problema.

Em uma notícia do jornal DIÁRIO DE BELÉM, de 28 de fevereiro de 1871, é feito uma crítica a câmara municipal “do sr. dr. Malcher”, de Belém, sobre “um immenso gato a desfazer-se lentamente em podridão” na rua Formosa, entre as Travessas S. Matheus e do Passinho. Segundo o jornal, desde o dia 22 do mês corrente qualquer um que passasse pela rua teria que “recuar e arripiar carreira, ou tapar o nariz com um lenço”, pois o animal, já em avançado estado de decomposição, exalava um odor muito incômodo. Acentuando a crítica o jornal comenta que o próprio sr. dr. Malcher atolou as patas de seu cavalo – chamado pelo jornal de rocinante – nas entranhas “putrefactas” do animal. A notícia acrescenta que o viram cuspir muito, mas mesmo dessa forma ele não tomou atitude e o gato continuou no mesmo lugar.

No fim da notícia, após o jornal comentar que uma chuva levou o cadáver para a travessa S. Matheus, a figura do urubu não somente é citada como também exaltada em contradição aos agentes públicos. O jornal afirma que “A caridade dos urubús é finalmente que acaba de socorrer-nos, pois que lhe estava fazendo o enterro”. Nessa notícia é nítida a crítica do jornal sobre a gestão de Malcher. Coloca-o como totalmente indiferente aos problemas de higiene da cidade, onde nem mesmo ao atolar seu cavalo e cuspir de nojo ao ver o problema toma algum tipo de atitude.
Em uma notícia posterior também no Diário de Belém, de 07 de março de 1871, rememora o caso do cadáver do gato que incomodou moradores com “o cheiro de podridão”. Mas nesse caso tem o objetivo de informar outro cadáver de animal em estado de decomposição, bem maior que o anterior – como é dito pelo próprio jornal. Ao invés de um gato o que se encontrava há dois ou três dias na rua S. Vicente era um cavalo morto. Entre as travessas da Gloria e da Princeza estava o cavalo se desfazendo “como se desfazia o gato”, e exalando “o necessário fedor”.

Em seguida o jornal afirma que é atribuição da câmara a responsabilidade sobre a limpeza das ruas. Comenta que a câmara tem seus fiscais e esses seriam os responsáveis por “correr as ruas” e executar com seus deveres. Logo após isso o jornal afirma que assim como o gato não encontrou um fiscal que o removesse o cavalo também não, e segundo a notícia “ali há de acabar por confundir-se com pó”.
Ainda comenta que os urubus conseguiam livrar a cidade do cadáver do gato, porém por conta de o cavalo ser um animal de porte maior e com fibras rijas, só Deus sabia como se faria a retirada do animal. Solicita também ao sr. dr. Malcher, “que anda sempre á cavallo”, que olhe para essas coisas. Além de pedir que ele abra os olhos “á sua gente e aos seus fiscaes”, e “chame-os ao cumprimento de seus deveres”, para que dessa forma “procure não desmentir esses elogios bombasticos que diariamente lhe tece o orgão de seu partido”.  

Ao fim da notícia ainda alfineta-o dizendo que “O Tira-Dentes disse ha poucos dias que os liberaes são myopes” e pediu que Malcher “Prove-lhe agora v. s., sr. presidente da camara, que o chefe desse partido ainda encherga um cavallo morto”.

Novamente nessa matéria é nítida a crítica para a gestão de Malcher sobre a questão de higiene da cidade de Belém. Aprofunda o problema utilizando a representação dos urubus ao dizer que nesse caso nem mesmo eles – que outrora apareceram como os únicos competentes – conseguiriam livrar a cidade do cadáver do cavalo.

Outra representação dos urubus sendo utilizada como crítica contra os problemas de higiene da cidade pode ser observada no Jornal LUZ DA VERDADE, de 23 de janeiro de 1873. Em uma crítica contra “A nova camarilha” que “não encontrado dinheiro nos cofres da municipalidade” começou a “agarrar quanto carneiro, cabras, porcos, cães, galinhas, patos, perús, etc., há nesta cidade”. Logo após isso o jornal comenta que esses mesmos não dão atenção para outro animal, afirma que “Esqueceram-se dos urubus” e coloca-os como “ave indecente que actualmente traz o respeitavel publico a sobressaltos ao passar na travessa S. Matheus e estrada do Arsenal, onde os nobres auxiliares dos srs. fiscaes teem morada”. Na notícia é possível analisar que a figura do urubu é utilizada no jornal para expor os problemas da política de higienização da cidade, onde nem mesmo próximo a morada dos auxiliares do fiscaes – que deveriam cumprir seus deveres sendo um desses a limpeza da cidade – as aves deixam de se acumular e assustam os que passam.

Já em 24 de fevereiro de 1873, no SANTO OFFICIO, o Tribunal do Santo Officio fazia algumas solicitações “Á vereação do municipio”. Também faz a reclamação e o pedido para que atentem as faltas que a câmara estava cometendo, como não se importar com a conservação das estradas e ruas nem a limpeza da cidade. Em seguida comenta que sobre a limpeza da cidade ainda possuíam muito a falar já que “é rara a rua onde não se encontre um animal morto”. Logo após enfatiza que “se não fosse o zelo dos urubús fácil é prever-se os incalculaveis males que dahi resultam aos munícipes, máxime na quadra epidemica que se atravessa”.

Novamente aqui os urubus aparecem como “salvadores” da cidade. A representação deles é utilizada para cobrar atitudes e expor a negligência da gestão de Belém sobre a limpeza das ruas.
Em março de 1873, novamente o SANTO OFFICIO cobra atitudes da câmara municipal e questiona se ela “está atacada de lethargia ou paralysia”. Reclama as promessas que eram feitas para serem executadas logo após o assumir da administração do município. A principal preocupação reclamada à câmara é sobre a limpeza das ruas que “estão intransitaveis”. Ainda acrescenta que os fiscais são pagos para realizar um trabalho que só é realmente efetivado pelos urubus. Afirma que os urubus é que “cuidam com muito zelo da limpeza da cidade”. É comentado dos serviços “relevantissimos” que os urubus haviam prestado à cidade, e que o único privilégio que a lei municipal fornece para esses é uma garantia à vida, “e seria uma ingratidão matar-se esses desinteressados agentes municipaes, que velam pela boa limpeza da cidade”. Termina acrescentando que “Este Santo Tribunal pede a camara duas cousas: que zele pela vida dos urubús, e que tome qualquer antídoto contra seu ataque de incuria”.

Os urubus são usados pelo SANTO OFFICIO para criticar a gestão municipal para com a limpeza de Belém, onde são até mesmo considerados mais importantes que os agentes da câmara. Ao pedir o zelo pela vida dessas aves, e que a câmara cure-se de seu desleixo, o pedido critica a gestão defendendo que os urubus são os principais responsáveis pela higiene da cidade em quanto os verdadeiros agentes municipais encontram-se adoecidos.

Outro caso bem interessante é um que se encontra no DIÁRIO DE BELÉM, de 28 de fevereiro de 1883. O jornal expôs um suposto pedido de um de seus assinantes. Em forma de poema o tal assinante pedia:

                             
Valha-nos Deus e o urubu,
N’esta quadra de agonia
Já que quem póde não quer,
Livrar-nos da asphyxia.

Na rua de Santo Antônio,
Ha tantos dias está,
Um cachorro apodrecido
Que de odor nos matará.

E a nossa edilidade
Que muros manda fazer,
Deixa ali o pobre bicho
Aos urubus p’ra comer.

Há quantos dias que passo,
As mais negras inclemencias,
Não sahio á rua, não posso,
Já padeço de esquenencias.

Decididamente morro
E comigo toda a gente,
Não ha fiscal nessa terra
Todos dormem docemente...

No poema a figura do urubu aparece novamente como central para a limpeza da cidade. Já que os agentes municipais não faziam nada, quem fazia algo era Deus e o urubu. O odor do animal morto, dessa vez um cachorro, aparece de novo causando inquietação e incômodo. O eu lírico do poema comenta ainda que já nem mesmo pode sair de casa, pois se encontra doente e com certeza vai morrer, assim como todos da cidade, isso por causa de o lugar não possuir nenhum fiscal para tomar conta da limpeza das ruas. Todos os agentes públicos dormem em quanto os populares rogam a Deus e ao urubu pela manutenção da higiene de Belém.

Outros casos em jornais também mostram a preocupação com a limpeza da cidade e reclamação com o descaso da gestão utilizando a representação do urubu para realizar a crítica social, mas me atenho somente nesses para mostrar um pouco sobre essa dinâmica do período. A presença do urubu permanece até hoje na cidade de Belém, as percepções e representações sobre ele algumas vezes se assemelham a essas aqui apresentadas. Mas o que parece claro é que como agente ambiental o urubu foi de muita utilidade para a sociedade belenense do século XIX, e em alguns momentos recebia os créditos por isso, servindo também como pilar de crítica contra a câmara municipal do período. Sorte da humanidade de Belém no século XIX pela resistência do organismo dos urubus contra as bactérias e toxinas existentes na carne de animais em decomposição. Se os agentes municipais não agiam, sobrava para esses personagens históricos e agentes ambientais.

*Wendell P. Machado Cordovil é graduando de licenciatura em história pela Universidade Federal do Pará - Campus Ananindeua, bolsista PIBIC do projeto "História e Educação Ambiental nas escolas de Ananindeua", coordenado pelo Prof. Dr. Wesley Oliveira Kettle.

Referências:

ALMEIDA, Tunai Rehm Costa de. Belém, uma história Ambiental: Representações da Natureza na capital paraense (1897 a 1902). In: XXVII Simpósio Nacional de história: Conhecimento histórico e diálogo social. Natal (RN). 2013. Disponível em: http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364772276_ARQUIVO_historiaambiental-anpuh.pdf Acesso em: 11/07/2018.

SILVEIRA, Flávio Leonel Abreu da; SILVA, Matheus Henrique Pereira da. Urubus-de-cabeça-preta (coragyps atratus), garças-brancas-grandes (ardea alba) e peixeiros na pedra do peixe: experiências conviviais interespecíficas na cidade. ILUMINURAS, v. 18, n. 45.

SILVEIRA, L. S. Um olhar sobre os Urubus. Cães & Cia, v. 383, p. 54-55, 2012.
Todos os jornais citados no texto foram acessados a partir do site da Biblioteca Nacional em sua hemeroteca digital.

[i] Trecho da música “No Meio do Pitiú” de Dona Onete. Pitiú é uma expressão comumente utilizada para se referir a odores de peixes, mas também pode se referir a outros maus cheiros.

Este texto foi publicado no blog https://escoladosananins.blogspot.com. Agradeço ao autor e aos editores da referida página.

domingo, 22 de julho de 2018

História ambiental e ensino: dossiê LHISTE

SUMÁRIO 

Uma voz que clama no deserto: minhas experiências de educação ambiental na formação inicial de historiadores
Ely Bergo de Carvalho

O uso de iconografias de paisagem para o ensino da História Ambiental: um diálogo com a História da Arte
Ana Marcela França

A Perspectiva ambiental e o Ensino de História na Amazônia: Experiências no município de Ananindeua
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A primeira aula de História Ambiental na UFRGS: Uma experiência no Ensino de História (2012-2013)
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Historiografia social da Amazônia e história ambiental: Um breve balanço
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Uma breve História da Educação Ambiental na Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos, RS, Brasil
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Da crise ambiental ao despertar da consciência ecológica: Diálogos entre a História Ambiental e a Educação Ambiental
Bread Soares Estevam

Os cursos de graduação em história das universidades estaduais do Paraná e a política estadual de Educação Ambiental
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O ruído infame das ecologias menores: o grindcore e as relações entre meio ambiente e educação
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A Ecocrítica e a Educação Ambiental no Ensino de História: uma proposta de análise a partir da revista Globo Rural
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Desastre da Samarco/Vale/BHP: uma tragédia em diferentes atos
Haruf Salmen Espindola, Cláudio Bueno Guerra

Desastres Ambientais e o Ensino da História
Marcos Aurélio Espindola

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Entrevista com Prof. Dr. Paulo Henrique Martinez (UNESP)
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Entrevista com Prof. Dr. Marcos Reigota (UNISO)
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RESENHAS
Livro História Ambiental e Migrações: diálogos
Débora Nunes de Sá

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