terça-feira, 20 de outubro de 2020

3º Seminário Amazônico de História e Natureza

 Você já imaginou participar de um congresso de alto nível sobre a Perspectiva Ambiental da História, sem sair da sua casa?


Em sintonia com a realidade atual e a preocupação em oferecer opções dinâmicas de divulgação científica, o Grupo de Pesquisa História e Natureza (CNPq/UFPA) realizará entre os dias 24 e 27 de novembro de 2020, o 3º Seminário Amazônico de História e Natureza (SAHN). 

O evento está recebendo resumos para comunicação oral e inscrições como ouvintes. 

A 3º edição será 100% online e contará com os mais renomados pesquisadores do campo da história ambiental no Brasil e internacionalmente. Abordaremos os temos históricos a partir do campo da história ambiental, considerando sempre a importância do debate interdisciplinar.  

Inscrições acesse https://sahn3.webnode.com/

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Ourém de outrora: memórias na leitura do presente

Sueny Diana Oliveira de Souza*

 Nasci nas margens do rio Guamá, na pequena cidade de Ourém, fundada ainda no século XVIII, durante o governo de Mendonça Furtado, que com mais de 250 anos de existência foi desmembrada, dando origem a muitos outros municípios do nordeste paraense e se mantém pequena e com um ritmo de vida que parece desafiar o tempo marcado pelo relógio. Uma cidade cortada pelo rio que delimita a fronteira administrativa com a cidade de Capitão Poço, desvinculada de Ourém há 59 anos.

Ali, na vida cotidiana, o ir e vir sobre o rio é constante. Mas a relação com o rio, com as estradas e a ocupação tem sofrido grandes impactos e alterado a minha percepção sobre estes espaços.

Parto da minha infância na metade da década de 1990, quando vivia em uma cidade cuja sede municipal em quase nada destoava da sua zona rural, exceto pelo fato de possuir iluminação elétrica e possibilitar o acesso a alguns serviços básicos de saúde e educação. Uma cidade onde grande parte dos moradores retirava seu sustento das plantações na zona rural, que tinha na base da economia a agricultura familiar, o pequeno comércio e o funcionalismo público. Havia pouco mais de 15 mil habitantes em toda sua extensão territorial, as ruas praticamente sem pavimentação, onde galinhas, patos e animais de estimação circulavam, e quase todas as tardes também eram ocupadas pelo gado de rebanhos deslocados das áreas abertas onde pastavam para as fazendas onde ficavam confinados.

Um lugar que antes do raiar do sol era invadido por trabalhadores agrícolas que se deslocavam de bicicleta ou a pé para suas roças localizadas em comunidades no entorno do centro urbano. Era quase uma romaria que se repetida todos os dias, pela manhã e à tarde na volta para casa, exceto aos domingos. Num período em que as estradas eram caminhos um pouco mais largos por onde circulavam produtos agrícolas em geral, carregados em cavalos, burros ou bicicletas.

E foram por essas estradas que cumpri as jornadas de deslocamento para chegar à casa de meus avós e às terras de onde vinham nossos sustentos com o trabalho na roça de meu pai, avô, tios, primos e tantos outros familiares de sangue ou adquiridos pelas relações sociais e de trabalho.

O sítio localizava-se (e ainda existe no mesmo local) a oito quilômetros do centro urbano de Ourém, na margem do rio que agora está sob a jurisdição do município de Capitão Poço. Quase um acaso, fruto do processo de desanexação das terras, pois o fato de a comunidade familiar Santo Antônio localizar-se na margem do rio que não se encontra sob a jurisdição de Ourém, em nada influenciava na dinâmica cotidiana, pois as vendas e compras dos produtos agrícolas ocorriam nesta cidade, que também era lugar de moradia em alguns dias da semana. Era também a sede da cidade, um lugar que recebia procissões de pessoas para as missas aos domingos pela manhã. As pessoas que cruzavam o rio e o percebiam ora como um aliado elemento da natureza, ora como um desafio que precisava ser transposto nos deslocamentos contínuos.

As relações com o rio misturavam-se às relações de sociabilidades, que eram reafirmadas sempre quando fosse lhe transpor gritava-se de uma margem a outra pedindo aos moradores que fizessem nossas travessias em canoas. Embora os moradores desta localidade não se incluíssem na definição de ribeirinhos, provavelmente por não terem na relação com o rio a base fundamental para a subsistência de seus moradores, o rio era primordial na dinâmica cotidiana e representava a proximidade com a pesca artesanal, fonte essencial para a alimentação, que, aliada ao que se produzia nas roças garantia a sobrevivência dessas famílias. E as relações se alteravam dependendo do caminho a ser trilhado ou em que altura o rio seria atravessado.

O final da década de 1990 e início dos anos 2000 alteraram a relação com o rio e ampliaram a importância atribuída às estradas. A ponte de madeira que ligava Ourém a Capitão Poço foi substituída por uma de concreto, depois de quase ter sido arrastada pela força das águas de março no inverno amazônico. Desde então, os caminhos onde antes passavam bicicletas e cavalos passaram a ser alargados para que pudessem ser trilhados por carros e caminhões que começavam a se tornar mais frequentes e precisavam vencer as distâncias entre o centro urbano e os sítios e fazendas nos arredores rurais localizados em Ourém ou Capitão Poço.

As transformações espaciais da cidade foram acontecendo lentamente. As áreas abertas que antes recebiam gado para pastar ou eram usadas como campo de futebol por inúmeras crianças passaram a ser ocupadas com casas de moradia. Uma expansão que foi marcada pelo fortalecimento do comércio e migração de pessoas, muitas provenientes das zonas rurais, que vieram para Ourém trabalhar nos comércios ou nas seixeiras que passavam por um processo de ampliação.

As seixeiras passaram a se proliferar nas zonas rurais de Ourém, nas estradas que interligavam a São Miguel do Guamá, Capanema, Bonito e Capitão Poço. Grande parte desses estabelecimentos se localizavam seguindo o curso do rio Guamá, em diferentes locais da sua extensão.

Acompanhando esse novo momento na economia, veio a ampliação do número de habitantes na cidade e uma redefinição das zonas rurais, pois as pequenas propriedades rurais pressionadas pela corrida em busca do seixo deixaram de existir, o que levou muitos trabalhadores antes rurais a migrar para o núcleo urbano a fim de venderem sua força de trabalho para os donos das seixeiras.

As mudanças se deram no âmbito espacial, econômico, nas relações de trabalho e sociais, assim como esse processo trouxe uma face da violência que Ourém não conhecera até então. A cidade que não era assombrada por assaltos até o início dos anos 2000, passou a vivenciar o medo que se tornou frequente. E os meios de locomoção antes utilizados em sua maioria bicicletas foram substituídos por motos, que se multiplicavam cada vez mais.

E a relação com o rio? Ah! De elemento da natureza importante para a subsistência e que precisava ser transposto nos trajetos para as zonas rurais, passou a se restringir quase que exclusivamente como fornecedor de água para lavar o seixo nas seixeiras, que na segunda década dos anos 2000 ocuparam as margens de quase todas as estradas e por todas as suas respectivas extensões.

E nesse processo vi as terras antes trilhadas a pé no percurso até a casa dos meus avós ganharem estradas alargadas para possibilitar o trafego de carretas. Vi a natureza ser completamente alterada, com igarapés assoreados e as margens do Guamá completamente degradadas. Vi ainda barragens de resíduos da exploração do seixo serem construídas quase que às cegas e ameaçarem as comunidades que teimam em subsistir. E vejo as comunidades que ainda resistem terem suas atividades alteradas. Primeiro, porque os trabalhos agrícolas cada dia têm menos importância para a vida cotidiana e a opção de trabalhar para os outros torna-se mais atraente, assim como a venda das terras era o meio de conseguir uma quantia em dinheiro de forma mais rápida. Segundo, porque algumas comunidades ainda se mantêm por serem terras de herança e ainda contam com pessoas idosas, cujo apego e relação com a terra são ancoradas em memórias de tempos idos...

As empresas de exploração de seixo são empreendimentos que se instalam, aparentemente, sem nenhuma fiscalização ambiental têm transformado o espaço urbano e o rural de uma Ourém que continua pequena e cada vez mais enfrenta grandes problemas sociais, que parecem ser minimizados por ações como as vivenciadas a partir de 2010, quando levou energia elétrica às zonas rurais. E, como garantem empregos precários a uma parcela da população, provavelmente foram ignoradas tanto pelos habitantes quanto pelo poder público, que preferem fechar os olhos frente aos crimes ambientais, condições de trabalho precárias e falta de assistência e cumprimento da legislação trabalhista.

Caminhar por Ourém hoje é para mim viver um conflito constante entre as memórias de uma vida simples de grande interação com a natureza, de pouco acesso a bens materiais, de liberdade de circulação, que percebia a ida para igarapés e brincadeiras nos banhos de rio as faces do cotidiano. E um presente marcado por transformações sociais que trazem fortes impactos na natureza, com alterações nas paisagens e sentido atribuídos à relação com o rio e igarapés.    

Saí de Ourém em busca dos meus sonhos ainda na adolescência, no início dos anos 2000. Trilhei caminhos de pesquisa na graduação, mestrado e doutorado que hoje me fazem enxergar Ourém, suas fronteiras administrativas, problemáticas e relações sociais que se refazem, como em toda sociedade, mas para mim deixaram e deixam tristes expectativas, sobretudo por ser uma cidade marcada pela passividade, cujas transformações nas paisagens e degradação ambiental que têm poluído e acabado com igarapés e vêm desmatando e assoreando as margens ainda estreitas do Guamá de forma bem acelerada parecem não ser percebidas ou são facilmente ignoradas.

E, a vida segue ancorada em uma perspectiva de crescimento econômico ínfimo, com pouca ou quase nenhuma qualidade de vida, em uma relação com a natureza que se restringe a frequentar os balneários que se multiplicam e, para a sua existência, colocam em risco a existência dos mananciais que são represados para atender ao público, tendo suas margens desmatadas para a construção de bares e barracas. E, quase todos os anos, em períodos de águas altas no inverno amazônico, rios e igarapés são notados quando transbordam, cobrem os bancos das praças e invadem as casas, alterando o ritmo de vida de pessoas, com isso, muitos preferem acreditar que as forças das águas permanecem preservadas.

*A autora é professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará / campus de Ananindeua.


quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Uma planta em paralaxe: visões de natureza no filme 'O abraço da serpente'

Maria Góes
Ivana Machado
Evaldo Hughes
Maurício Silva

O filme "O Abraço da Serpente", lançado em 2016, com direção do colombiano Ciro Guerra, imerge nos sinuosos rios e imediações da Amazônia colombiana, em uma jornada entre duas temporalidades - os séculos XIX e XX, sendo fundamentado em pesquisas nos diários de expedições dos antropólogos Theodor Koch-Grunberg e Richard Evan Schultes. A sensibilidade semiótica da direção, integralmente em preto e branco, remetendo às fontes etnográficas clássicas, nos envolve em uma natureza que não se limita apenas ao palco da narrativa, transmutando-se também em um personagem, um sujeito meta-humano, que modifica e é modificado pelos seres, sincronicamente, durante todo o percurso. O próprio título reflete a composição sensorial do enredo, quando nos permite ter uma impressão visual do corpo da cobra realçada nas curvaturas dos rios, e os sons da floresta geram uma atmosfera que nos leva a adentrar os mistérios da mata fechada. Logo, é uma narrativa que leva o expectador a ser realmente abraçado por essa serpente que integra o mundo biofísico amazônico, num labirinto de texturas, sons e contrastes.


Somos defrontados por episódios que expõe as marcas da colonialidade nas Américas; o ciclo da borracha, as missões catequizadoras, o messianismo, o desenvolvimento da ciência, entre outros temas corriqueiramente encontrados em relatos escritos por viajantes do período. No entanto, o filme nos instiga a ir além do silêncio destas palavras que atravessaram o tempo, e trouxeram consigo o arquétipo de um índio singular e monocromático. Aqui, o não-dito toma forma, e nos mostra os indígenas, plurais, em várias nuances - indivíduos com agências e dissidências em meio a estes eventos, que expressam diferentes posicionamentos e formas de lidar com os entraves coloniais ao longo da trama. Karamakate, que teve seu povo totalmente dizimado pelos europeus, enxerga na colonização o signo da violência e destruição de tradições e existências, renunciando qualquer tipo de contato ou acordo ao isolar-se dos brancos e de outros povos que se relacionam com os colonizadores para preservar sua ancestralidade. Já Manduca, ajudante do cientista Theodor, aderiu aos costumes ocidentais e vê a ciência como horizonte para propagar conhecimento sobre os povos indígenas aos brancos.

A percepção dos personagens sobre alguns objetos nos convida a refletir sobre os paradigmas da alteridade, e a colisão cultural do encontro com a outra margem para além do Eu, o Outro. A utilização do mapa para guiar o caminho, que é uma representação sintética do espaço, a compressão de um “cenário” complexo, vivo e dinâmico, incomoda Karamakate, que interage com o espaço de forma mais espontânea, sem um objeto mediando o contato da paisagem com o ser, com o trajeto guiado pelo fluxo temporal da natureza, e não do ser humano. A densa carga que ambos europeus relutam em se desfazer, mesmo que dificulte a locomoção pelos rios, também pode ser analisada sob essa ótica. Ela representa o vínculo direto à suas nações, e a forma ocidental de lidar com o conhecimento – a ciência, que tende a categorizar e organizar os elementos do mundo em arquivos, relatórios, enfim, materializações, para explicá-los. É a única forma tangível que remete ao ethos europeu no meio de um lócus, um mundo cultural onde estes são estrangeiros. Para Karamakate, tudo isso parece frívolo, já que este possui o conhecimento vinculado à oralidade, sendo portador da própria tradição, sem a necessidade de uma documentação física para auxiliar seu exercício da memória. Ou seja, diferentes modos de lidar com os saber, que repercutem, consequentemente, em sentidos diferentes na mobilização dessa “bagagem” da experiência. 


Por fim, a busca pela planta mística Yakruna, que é o epicentro do enredo, confirma a intensa presença e poder que a natureza exerce sobre os personagens, ao atuar como um elo que perpassa os dois recortes temporais do filme. A planta é reinterpretada de acordo com a perspectiva sob a qual é submetida, possuindo simbologias e servindo a finalidades distintas. Os homens de ciência a enxergam como um elemento opaco, orientados por interesses de expansão econômicos e políticos ou pela promessa milagrosa de cura, já o personagem indígena Karamakate a percebe como elemento sagrado que deve ser preservado, pois é intrínseco a sua identidade étnica e pertencimento ao cosmos – a planta possibilita os rituais xamânicos que dão acesso ao conhecimento ancestral, sendo a serpente um ser mágico que criou a natureza e possibilitou a existência. Assim, o filme nos revela diferentes e contrastantes óticas sobre a natureza, dependendo do observador, e nos leva a refletir sobre nossa posição como seres portadores de historicidade dentro do mundo natural.

*as autoras e os autores são estudantes de graduação do curso de História da UFPA e membros do projeto de pesquisa 'Natureza nos relatos de viagem'. 

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Continuidade cenográfica em Rugendas e Calixto

Diogo de Carvalho Cabral
School of Advanced Study - University of London


Ao brincar com duas imagens para uma apresentação ppt, me surpreendi ao perceber uma grande continuidade cenográfica. A obra da esquerda (bem oblonga) é "As perobeiras", em que Benedito Calixto (1853-1927) retrata o desmatamento numa fazenda de café em Bebedouro, oeste paulista, em 1906. A da direita é a famosíssima "Derrubada de uma floresta", em que Johann Moritz Rugendas (1802-1858) também retrata o desmatamento cafeeiro, possivelmente no Rio de Janeiro, em 1835. 


É quase como se Calixto estivesse estendendo o cenário enquadrado por Rugendas setenta anos antes, acompanhando a linha do relevo, da encosta em direção ao vale adjacente. Simbolismo semi-consciente que refletia a continuidade de um mesmo processo - o avanço da onda cafeeira sobre a Mata Atlântica - em outra porção do território nacional? No verso de sua pintura, Calixto escreveu "As Perobeiras (na terra do café) - É uma espécie da flora paulista que agoniza!"

segunda-feira, 13 de julho de 2020

História Ambiental Latino-americana: mesa GEPAM

O evento será realizado pelo Grupo de Ensino e Pesquisas Americanistas (GEPAM), vinculado ao CNPq, sediado na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). O encontro inicia no dia 27 de julho e o encerramento acontecerá dia 29 de julho. 


Dia 28 de julho

11 h | Mesa 3 - História Ambiental Latino-americana
com os Professores Doutores:
Diogo Cabral (Trinity College Dublin, Irlanda)
Guillermo Castro Herrera (Fundación Ciudad del Saber, Panamá)
Wesley Kettle (Universidade Federal do Pará - UFPA)






quinta-feira, 9 de julho de 2020

Capitães da Areia (1937): Varíola e Questão Social


Marlison Souza Moraes

Nos anos de 1930, na Bahia, Jorge Amado (1912-2001) escrevia de forma crítica acerca da epidemia de varíola – também chamada popularmente de “alastrim” e “bexiga” –, e no impacto que a doença exercia, principalmente, na população mais pobre da sociedade do período.
Publicado originalmente em 1937, o romance “Capitães da Areia” já denunciava em suas páginas a situação de abandono em que se encontravam os meninos de rua nas cidades da Bahia e também do Brasil. Além da própria existência de um tipo de linguagem da violência policial que reprimia ainda mais a vida difícil das crianças que, sob a luz do luar, dormiam em um trapiche abandonado.
Considerado escritor da Segunda Geração do Modernismo brasileiro, conhecida também como “Geração de 30”, o autor juntamente com outros nomes como Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, traz em suas obras uma forte mensagem de denunciação sobre a realidade social, cultural e econômica do Brasil. A partir desse cenário de desigualdade social que atingia as crianças de rua, Jorge Amado constrói uma narrativa voltada para a denúncia dessas mazelas que constantemente se faziam presentes na sociedade brasileira da primeira metade do século XX.
Em uma das passagens mais delicadas do livro, o autor escreve que além do contexto da fome, da violência, da criminalidade e do desprezo social em que viviam os capitães da areia, eles também precisavam lidar com o terrível medo da doença de “bexiga”. É a epidemia de “alastrim” ou varíola que vai desencadear alguns dos momentos mais dramáticos e sensíveis do romance, pois um dos meninos da turma cai doente e percebe-se totalmente desamparado para enfrentar a situação.
No começo do capítulo em que o autor propõe um debate acerca dessa doença, ele começa falando que:

Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da saúde pública, metiam os doentes num saco, levavam para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam (...) Nas casas pobres as mulheres choravam. De medo do alastrim, de medo do lazareto.

Apesar da importância da mensagem da cultura das religiões africanas e afro-brasileiras na passagem, Jorge Amado nos mostra que a epidemia era muito mais cruel com quem não tinha acesso à saúde básica no período para poder tratar da doença de forma adequada. Os que mais padeciam, geralmente, eram pessoas negras e pobres que viviam totalmente a margem da sociedade numa situação de extrema vulnerabilidade social. E os capitães da areia, como aborda o romance, também foram afetados de forma triste por eles fazerem parte desses sujeitos que viviam desassistidos pelo Estado e poder público local, o que contribuiu para a morte de um dos tripulantes da equipe. Uma criança.
Portanto, Jorge Amado, desde os anos de 1930, já escrevia sobre a importância da criação de políticas púbicas para o atendimento das pessoas mais pobres da sociedade. No contexto pandêmico do novo coronavírus no Brasil, Capitães da Areia (1937) assume uma importância ímpar no que diz respeito à mensagem crítica da forma como uma doença pode atingir uma parcela da população que vive em situação de vulnerabilidade. A chegada do vírus escancarou nossas desigualdades sociais, sendo os mais pobres e negros/as os/as que mais sofrem. Tal como nos mostra os escritos do romance de 1937, na cidade da Bahia.

Marlison é estudante do curso Licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA) Campus Ananindeua. É membro do Grupo de Pesquisa CNPq  História e Natureza. Atualmente desenvolve pesquisa sobre os temas: História, Literatura e Gênero na Amazônia durante o período Civil Militar.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

A natureza em Max Martins - palestra


O Grupo de pesquisa História e Natureza (UFPA/CNPq) convida todas e todos para participar nesta sexta-feira, dia 02 de julho de 2020, às 15h30, da palestra 'A natureza em Maz Martins', que será ministrada pelo professor Paulo Vieira. 

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Antropoceno: a pandemia como face da crise ecológica



Alexandre Araújo Costa
Universidade Estadual do Ceará
@filosofiaonface


“Sentimo-nos como se estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos. Não para salvar os outros, mas para salvar a nós mesmos”. (KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo.)

Vejam. A gente na verdade está diante de uma crise sem precedentes, com a pandemia do novo coronavírus. Eu queria apenas mostrar aqui rapidinho uma imagem para vocês que coloca em perspectiva a pandemia do coronavírus em comparação com outras pandemias do passado remoto e relativamente recente. A gente têm a peste bubônica, a peste negra ou a peste bubônica, como sendo aquela que dizimou, até onde se sabe, a maior quantidade de pessoas.

A segunda delas é a pandemia de varíola, que a pesar de ter se iniciado em 1520, trazida dos europeus para a América, ela matou cinquenta e seis milhões de pessoas, e essa pandemia, na verdade, não pode ser considerada como completamente encerrada. Ainda hoje, membros das comunidades indígenas morrem de varíola muitas vezes nos primeiros contatos com os europeus. Isso foi algo que aconteceu recentemente, por exemplo com Yanomami, como bem relatado pelo Davi Kopenawa na sua obra recente “Sobre a queda do céu”. Covid tá aqui por enquanto. Mas obviamente é lamentável que a gente tenha certeza que esses números vão se expandir muito nos próximos dias. E a expansão dos números do corona vírus, que é algo justamente inevitável agora, eles obviamente são uma tragédia, uma enorme tragédia, a maior tragédia já desde os nossos tempos. Mas talvez seja por outro lado uma oportunidade ímpar para, parafraseando Ailton Krenak, escaparmos da cegueira. E nesse sentido o que que a gente pode dizer da importância de termos essa menção a um pensador indígena no começo?

Eu diria que parte da importância disso tem a ver com algo que foi dito no texto chamado “Os involuntários da pátria” pelo professor Eduardo Viveiros de Castro, quando o antônimo de indígena é “alienígena”.

No desenvolvimento do nosso tema hoje, justamente nós vamos adotar o oposto do indígena, o alienígena como a perspectiva. Nós vamos abordar o tema de hoje nos colocando no lugar de um. E a historinha que eu vou contar hoje para vocês é justamente a história de um ET, de um alienígena, que visita a terra daqui a alguns poucos milhões de anos. E obviamente como toda civilização tecnológica muito provavelmente esse extraterrestre é curioso e vai fazer prospecções sobre o que aconteceu com nosso planeta, no passado do nosso planeta. E para isso ele perfura a rocha.

Muito bem. Se um ET fizer isso daqui a alguns poucos milhões de anos ele vai eventualmente se deparar com uma camada de sedimentos, uma camada de rocha, que vai representar o que aconteceu nos dias de hoje, o que está acontecendo hoje, e parcialmente o passado. Muito provavelmente esse visitante do futuro iria se surpreender com o que encontrou. Em primeiro lugar ele iria encontrar tecno-fóceis. Da mesma maneira como hoje nós somos capazes de encontrar a pegada petrificada de um dinossauro em uma rocha, ou o esqueleto de um peixe, uma marca do esqueleto de um peixe, numa rocha. Esse extraterrestre seria capaz de encontrar as marcas de uma placa mãe de um computador, ou de um resto de aparelho de celular.

Seriam técno-fóceis. Ele iria encontrar também vestígios de Plutônio-239, que é um elemento que virtualmente não acontece, não ocorre, na natureza. Nem mesmo tem sendo produzido pela explosão de Super Novas. Plutônio-239 é um resíduo de testes nucleares e o pico da concentração de Plutônio-239 nos sedimentos que seriam encontrados por esse extraterrestre marcariam justamente o início do hoje de testes nucleares em massa. Especialmente no que corresponderia a nossa década de 1950. Ele também encontraria mudanças nos isótopos de carbono e, claro, evidências de uma extinção em massa, o que seria a sexta extinção no nosso planeta.

Essas descobertas desse extraterrestre iriam basicamente chamar atenção para uma coisa que há milhões de anos antes, ou seja, hoje no presente, teria existido uma espécie com civilização tecnológica. Inclusive capaz de produzir artefatos nucleares. Se ele fosse capaz de investigar mais sobre o que aconteceu ou está acontecendo agora, esse extraterrestre realmente identificaria que essa espécie dominante seria um enorme predador. Nós hoje, movimentamos, nas atividades de mineração, três vezes mais rocha e sedimento do que todos os rios do planeta transportam juntos. Para se ter ideia, é isso que é necessário para que nós tenhamos, todos nós, um aparelhinho como esse aqui [smartphone], de 250 gramas, no nosso bolso, e vários de nós tenham carcaças de uma tonelada de aço em nossas garagens.

Para a gente ter uma ideia, são necessárias, para nós obtermos os cinquenta, ou mais de cinquenta, elementos químicos necessários para produzir um único celular, desde o alumínio da carcaça, o cobre dos condutores, o paladium e o ouro dos circuitos integrados, o lítio e o cobalto das baterias, nós precisamos minerar 70 kg de rocha. Para produzir um único aparelhinho desses [smartphone].

É impressionante isso. A gente teria que parar, e pensar, que nós estamos transportando 70 kg de rocha quando andamos, quando ficamos por aí usando um aparelho como esse. Da mesma maneira, imagine que cada automóvel demanda cerca de uma tonelada de aço na sua produção, e hoje nós temos mais de cinco bilhões de aparelhos celulares no planeta e temos mais de um bilhão de veículos automotivos. Daí dá para se ter uma ideia da quantidade de minério, de matéria prima, que é colocada o tempo todo. E é por isso que eu preciso imaginar que Mariana, Brumadinho, obviamente são crimes imperdoáveis. A Vale e a Samarco são empresas criminosas, não temos dúvida disso. Mas é preciso entender que isso não é apenas um acidente, um caso isolado. A própria demanda, sempre crescente de matéria prima, faz com que ocorrências raras, que são esses crimes ambientais e crimes contra a humanidade, eles se tornem cada vez mais prováveis. A necessidade de atender essa demanda louca tem uma conexão com as tragédias de Mariana e Brumadinho.

É preciso que a gente entenda também que nós somos enormes predadores de energia e é preciso situar isso aí quando a gente fala de antropoceno. Somos seres humanos predadores de energia, especialmente porque o modo de vida que nós construímos, especialmente a partir da grande aceleração capitalista de meados do século XX, é extremamente intensivo em energia. Para a gente ter uma ideia, o nosso organismo, o nosso corpo bilógico, ele demanda cerca de duas mil quilocalorias diárias para se sustentar, para nós vivermos.

No entanto, a demanda energética de um estadunidense médio para não apenas obviamente se sustentar, sustentar o corpo biológico, mas para sustentar aquela façanha de uma casa grande, a movimentar seu SUV pelas estradas, para manter todos os aparelhos eletrônicos, eletrodomésticos, que ele possui ligados, para produzir os bens de consumo que diariamente ele adquire na forma de mercadoria, a demanda energética associada a isso é muito maior. É mais de duzentas mil quilocalorias por dia. Ou seja, a gente tá falando algo, duas ordens de magnitude, cem vezes maior, do que a nossa demanda biológica. Então nós viramos também predadores de energia, que demandam cada vez mais para o modo de vida que nós adotamos, que uma proporção gigantesca da geração de energia seja apropriada por nós, dentro do sistema terra. Essa demanda de energia enlouquecida, que gira essa roda acelerada de extração, produção, consumo e descarte, ela basicamente veio sendo atendida, pelos últimos dois séculos, pela queima dos combustíveis fósseis. Pela queima de carvão, petróleo e gás. O que nos coloca na sinuca de bico da emergência climática.

Mas claro, também como predador (aí a gente começa a falar de temas mais próximos, talvez, do aspecto da pandemia. A gente vai começar a falar de algo que aproxima mais antropoceno e pandemia. Aí a gente vai perceber como a pandemia é uma face do antropoceno) nós somos também consumidores vorazes de carne. Eu queria mostrar para vocês aqui, uma imagem que mostra o crescimento acelerado do consumo de carne em escala global. Segundo os dados  da FAU, em 2018 nós tínhamos nada menos que trezentos milhões de toneladas de carne sendo consumidos. Ou seja, nós estamos falando de uma quadruplicação desse consumo em cinquenta anos. Não, isso não acompanhou o crescimento populacional, é importante que a gente lembre isso. O aumento da demanda de energia, o aumento do consumo de carne e um cem números de outras variáveis, não ocorrem na proporção direta do crescimento da população humana. Ocorre, na verdade, de maneira mais acelerada ainda, o que tem uma relação intrínseca, não apenas com a quantidade de seres humanos, mas, sobretudo, com o modo de vida adotado.

Obviamente nós vamos entrar em detalhes depois, mas eu queria lembrar que carne não é algo abstrato, carne na verdade é cadáver, e eu queria lembrar vocês que a ciência recentemente mostrou muito bem que no mínimo todos os répteis, todas as aves, todos os mamíferos, somos todos nós, indivíduos com capacidade de nos nossos cérebros produzir sonhos. Todos esses seres têm a capacidade de sonhar. Nós somos, portanto, meio trilhão de indivíduos sonhadores. Pelo menos, répteis, aves e mamíferos. E o que acontece, por tanto, é que para atender essa demanda enlouquecida de carne, de trezentos milhões de toneladas de carne consumidas pela humanidade a cada ano, o que acontece é que nós estamos levando a morte cerca de 70 bilhões de seres sencientes. Cerca de 70 bilhões de sonhadores. 14% dos seres que sonham nesse planeta são todo ano levados à morte para saciar a fome de carne do outro. Obviamente a maior parte deles são aves, são galinhas, mas junta-se também porcos, perus, carneiros, bodes, e obviamente, bovinos, bois e vacas. Então eu queria que a gente realmente pensasse, obviamente, nessa perspectiva também. Porque nós não somos senão parte dessa biosfera, nós somos parte inclusive dessa, que eu costumo chamar de, morfeosfera. Ou seja, uma esfera dos sonhos. Nós compartilhamos a capacidade de sonhar como todos esses seres do nosso planeta. Eu diria que é importante que a gente entenda o impacto que tem a indústria da carne, não apenas na sua perspectiva ambiental, climática, sanitária, mas também na sua perspectiva ética. É preciso que a gente traga esse conceito.

Eu queria obviamente também, nessa nossa abordagem, eu queria introduzir uma outra informação relevante que é o conceito de limites planetários. E esse conceito tem tudo a ver com antropoceno, porque o antropoceno na medida em que ele representa a dominância da humanidade organizada sob o modo de produção de mercadoria sobre o modo de produção capitalista, sobre os ciclos e fluxos de matéria e energia no sistema terra, o antropoceno representa uma violação dos chamados limites seguros da humanidade. E é impressionante é o seguinte, que esse deveria ser um conceito muito básico, muito primário, uma vez que os adultos costumam falar sempre que as crianças tem que ter limites, as pessoas sabem o que é um limite de velocidade e as pessoas sabem, principalmente, o que é o limite do cartão de crédito e o limite do cheque especial, e aí é uma vergonha que muitas vezes a gente tenha que se referir a uma abstração que é dinheiro, para que as pessoas entendam um conceito como o de limites, como o aplicado a coisas muito mais relevantes, muito mais concretas, palpáveis, materiais, que são justamente os limites planetários.

Esses limites são nove. O clima, a biodiversidade, o uso da terra, o uso de água doce, os surtos biogeoquímicos (com destaques para os surtos de nitrogênio e fósforo), o PH dos oceanos, a concentração atmosférica de aerossóis, e o ozônio estratosféricos, e também, claro, a presença de novas entidades. Ou seja, os poluentes do ambiente, o que vai do lixo radioativo até o plástico. A gente não vai poder falar de todos eles, mas eu queria, obviamente lembrar, que alguns desses limites estão muito concatenados com a pandemia. E que limites seriam esses?

Um deles é justamente a degradação ambiental. Eu estou compartilhando agora um dado da FAU que mostra como é que o uso da terra foi radicalmente modificado para atender a nossa demanda alimentar, ao nosso tipo de dieta, uma dieta que é basicamente muito intensiva em carne. Ou seja, no holocausto de dezena de bilhões de seres sencientes todo ano. Essa degradação ambiental, ela vem do fato de que 29% da superfície do planeta é de continentes, mas apenas 71% é habitável, ou agricultável. O que acontece nesses 71% é que nós que, obviamente, inicialmente, eram florestas ou outros biomas, outras matas, hoje nós temos apenas isso reduzido a 37% de florestas, 39 milhões de quilômetros quadrados, e 11% de outros biomas arbustivos, como nosso cerrado, a caatinga, a savana africana e muitos outros. Percebam  que hoje, 50% do que seria essa terra que seria habitável, é dominada pela agropecuária. 1% é infraestrutura, área urbanizada, enfim. Então o grosso da degradação ambiental está relacionado com a agropecuária. Mas aí é que vem o dado mais importante. Desses 51 milhões de quilômetros quadrados destinados a agropecuária, apenas 26%, ou seja, 11 milhões de quilômetros quadrados, são destinados a produção dos vegetais que alimentam os seres humanos. Esses 23% respondem por 82% das calorias que consumimos e 63% das proteínas que consumimos.

Os outros 77% da área, ou quarenta milhões de quilômetros quadrados, o que é mais do que as florestas do planeta estão dedicados a produção de carne. Ou seja, a produção de cadáveres. Esses 77% da cobertura da terra habitável agricultável, é dividida entre pasto e culturas que são exclusivas, ou majoritariamente, destinadas a alimentação de animais confinados. E aí eu me refiro, por exemplo, a soja brasileira. Dos terços da soja brasileira, ou três quartos da soja brasileira, não têm finalidade a alimentação humana. É ração. O gosto disso vai virar ração de porcos na China. Boa parte da produção de grãos do planeta é para alimentar aves e suínos e bovinos confinados. O que acontece é que 77% dessa área supre apenas 18% das calorias humanas, das calorias usadas por seres humanos. E apenas 37% das proteínas. O que mostra, obviamente, que uma dieta a base de vegetais seria uma alternativa óbvia para reduzir a pressão sobre os ambientes, sobre os biomas, conter o desmatamento, conter a degradação ambiental. E obviamente permitir o uso de áreas para outra finalidade, como reflorestamento e até mesmo a produção de matéria para bioenergia, o que é fundamental para que a gente possa efetivamente inclusive tratar outras questões fundamentais e urgentes como a crise climática.

Percebam então que esse primeiro aspecto que toquei, da mudança do uso do solo, é uma parte essencial do problema. Nós estamos cada vez mais avançando sobre ambientes silvestres. Estamos cada vez mais colocando pressão e fazendo contato com espécies silvestres, cada espécie silvestre tem o seu repositório viral, cada espécie silvestre tem uma carga viral própria. Obviamente, em condições pré antropoceno, as chances de um vírus, ou uma mutação desse vírus, eventualmente sair de um organismo de um animal silvestre e ir para um ser humano era eventualmente nula, era muito pequena. Hoje em dia nós temos uma outra situação, essa invasão humana nos ambientes silvestres coloca-nos cada vez mais em contato com essas cargas virais. Então a chance de uma contaminação é cada vez maior. Esse é o primeiro fator que eu queria que nós abordássemos. Degradação ambiental tem tudo a ver com pandemia.

Eu queria mostrar um outro slide aqui para vocês agora, que está relacionado com o fato anterior, com a degradação ambiental e a demanda por carne, mas é num outro aspecto. É no terreno da domesticação da biomassa terrestre. Pra gente ter uma ideia, e esses gráficos aí são realmente chocantes, cerca de 96% da biomassa de mamíferos do planeta é domesticada. 60% disso é gado, 36% humano, e apenas 4% da biomassa de mamíferos permanece silvestre. Escutem o que eu estou lhes dizendo nós temos 15 vezes mais massa em animais de criação do que em animais silvestres. Nós temos 15 vezes mais massa em suínos, bovinos, caprinos, do que em tudo o que você possa imaginar de mamífero silvestre. Da onça pintada ao tamanduá, da capivara ao mico-leão, do orangotango ao elefante, da girafa ao rinoceronte, do tigre ao gnu ao alce. 15 vezes mais.
E um outro dado também estarrecedor é o que tem ao lado, é o fato de que 70% da biomassa de aves está em granjas. De cada 100 quilogramas de ave no planeta 70 quilogramas estão em granjas. 30 é todo o resto. Todo o resto que canta, saltita livremente, seja em ambientes urbanizados, seja em ambientes silvestres. Isso obviamente é uma calamidade, não apenas ambiental, mas é uma calamidade sanitária.

Se vocês perceberem, se a memória de vocês não falha, boa parte das últimas grandes pandemias tem uma relação direta com a agropecuária, particularmente com o confinamento animal. Gripe aviária, gripe suína, esses são os nomes populares. Nós temos hoje esse quadro em que dois aspectos da crise ecológica. Um deles é degradação de habitats que coloca em contato, cada vez mais, espécies silvestres e espécies domesticadas, e o próprio confinamento animal, são duas bombas relógio em termo do aumento da probabilidade, da chance, de um vírus típico de uma espécie migrar para outra, seja diretamente para humanos, seja para uma espécie de animais que servem de alimento a humanos.
É preciso entender que o antropoceno, ou seja, essa dominância da espécie humana, organizada sob o capitalismo, em torno do sistema terra, é estreitamente vinculado a globalização. Então existe um enorme fluxo de DNA. Um enorme fluxo viral associado às atividades humanas. Percebam, por exemplo, não apenas as viagens internacionais de pessoas. Hoje isso é obviamente uma condição fundamental para que o coronavírus tenha virado pandêmico, nós temos todas as cidades do planeta conectadas em questão de horas. Então rapidamente uma contaminação pode se espalhar, mas não é só isso. É preciso que a gente entenda que há também outros fatores associados.

Um deles é o transporte de carga e a introdução de espécies invasoras. Por exemplo, água de lastro em navio. É a água que as companhias de navegação utilizam para compensar o peso dos navios quando eles estão sem cargas. Quando o navio descarrega ele fica muito leve, tende a flutuar demais e aí essa ausência de carga é compensada colocando água em determinados compartimentos no caso do navio.

Mas essa água é do mar e ela traz tudo dentro. Por exemplo, o coral-sol que invadiu os mares das Américas do Caribe, a partir justamente desse tipo de transporte. Então nós temos justamente, constantemente trazendo através das cargas que circulam planeta à fora, vírus.

Outro aspecto importante, ou outros dois aspectos importantes têm a ver mais de maneira indireta através da questão da mudança climática. São eles primeiro o derretimento de geleiras, do permafrost, etc. Que expõem a matéria orgânica que estava congelada há dezenas, ou centenas, de milhares de anos, e eventualmente a exposição dessa matéria orgânica à decomposição pode ressuscitar vírus que estavam adormecidos há muito tempo. Então essa é uma outra fonte de doença relevante.

Também ligado à mudança climática tem a questão da mudança na faixa de habitat de vetores de doenças. No caso já bastante bem reportado sobre isso, é o avanço da dengue rumo às altitudes mais altas. A dengue, muito exclusiva dos trópicos em geral, ela já avança sobre latitudes mais altas porque o aquecimento global permite a reprodução e a manutenção do Aedes aegypti nessas condições (lembrando que o Aedes aegypti também é um caso de espécie invasora).

E por fim, a própria mudança dos habitats, devido ao aquecimento global, a mudança climática, força a migração de espécies. Então espécies que não tinham contato umas com as outras passam a ter contato. Isso permite uma troca viral entre essas espécies cada vez mais acelerada. Antes os principais transportadores de vírus eram, talvez, as aves migratórias, hoje não. Nós, de longe, substituímos as aves migratórias como vetores de transmissão à longas distâncias de material viral.
Então percebam que tudo isso está concatenado. O que eu quero dizer, no entanto, é que o coronavírus serve, nesse aspecto, como algo muito ilustrativo, mas ele está longe de ser “o patógeno perfeito” ou “a tempestade perfeita”. O que seria uma tempestade perfeita? Seria algo muito mais trágico, muito mais grave. Seria um vírus tão contagioso quanto o novo coronavírus com também um tempo longo de incubação, um tempo de contágio assintomático longo, mas que fosse mais letal. E isso, principalmente, isso é perfeitamente possível acontecer. Isso seria muito mais grave ainda numa situação de caos climático generalizado.            

Eu quero lembrar aqui um exemplo, o exemplo, por exemplo, que não é de nenhum país do terceiro mundo, nem um país do Sul global, eu to falando dos Estados Unidos. Vou falar aqui é da Louisiana, da região de Nova Orleans. Quem lembra do catrina? Que, salvo engano, em 2004 atingiu com uma fúria imensa o Sul dos Estados Unidos, em particular Louisiana e a região de Nova Orleans. A gente lembra, inclusive, que aquela região ficou desassistida durante muitos dias. Uma região de maioria negra, de maioria pobre. Imagine, e lembre, que hoje os Estados Unidos estão sendo atingidos com força total pela pandemia. E obviamente os olhos se voltam mais para Nova Iorque, por conta do número de pessoas. Mas o local que hoje concentra a maior proporção de doentes e mortos não é Nova Iorque é a região metropolitana em torno de Nova Orleans. Imagine isso numa situação concorrente casado ao mesmo tempo com um grande furacão, ou uma grande catástrofe climática. Imagine a situação hoje dos refugiados, sejam refugiados ambientais, sejam refugiados de guerra. Como é que você vai chegar e dizer para evitar aglomeração nesse caso? Imagine o caos climático multiplicando por dez, por cem, por mil, esse quadro.

Eu quero que vocês lembrem, por exemplo, que Bangladesh (é um país que fica ali no subcontinente indiano, no Sul da Ásia, pertinho ali da Índia), é um país que tem a área do nosso Ceará aqui, aproximadamente. Tem 154 milhões de pessoas lá, 100 milhões dessas pessoas moram a menos de 10 metros do nível do mar. Uma elevação no nível do mar de escala de poucos metros produzirá dezenas de milhões de refugiados climáticos. Como é que você combate uma pandemia num quadro desse?

Porque, assim, para mim não resta dúvida: nós só temos uma alternativa que é receber de braços abertos os irmãos e irmãs de Bangladesh, ou de qualquer outro local afligido por uma catástrofe climática. Então eu disse para vocês, né, usando as palavras do Ailton Krenak, que fala de oportunidade de escapar à cegueira. A Covid-19 não é nem de perto uma catástrofe do tamanho do que pode se abater sobre nós, mantida essa nossa lógica irresponsável de permanecer sentado em cima dessa bomba relógio de pandemia e caos climático. E acho que esse é o ponto, talvez, nós estamos sentados numa bomba relógio. De muito mais alcance, muito mais profunda, de muito maior escala, e muito mais irreversível, do que aquilo que a gente vislumbra hoje.

Lembrando que nesse caso, nós já temos falado de que as coisas não vão voltar ao que eram antes. Que a gente vai precisar reconstruir a economia, nós vamos precisar mudar o que está sendo feito. Nós não temos ideia de quão irreversível é algo mais profundo, como eu disse, uma pandemia com um vírus, desculpe a redundância, mas um vírus mais virulento, numa condição agravada de aquecimento global com o planeta dois, três graus mais quente.

Eu queria então lembrar da célebre frase do Walter Benjamin, em que ele dizia que, se referindo ao capitalismo, muitas vezes as pessoas que pensam uma sociedade alternativa ao capitalismo não pensam que na verdade o capitalismo tem tudo a ver com esse, essa aceleração, com essa dominância sobre a natureza, sobre a dominância irresponsável. Então diferente de muitos pensadores que imaginam alternativas ao capitalismo, Walter Benjamin falava de freio de emergência, ou uma frase que eu gosto muito, de que “é preciso cortar o pavio que queima antes que a faísca atinja a dinamite”.
Eu vou fazer uma última tentativa aqui e aí vocês me dizem se funciona ou não. Eu vou tentar colocar um slide aí. Mas é um slide que eu posso descrever em palavras também. Porque é um slide que diz respeito a famosa curva que a gente quer achatar. Acho que todo mundo já testemunhou, todo mundo já viu, a famosa curva de contágio do novo coronavírus em que a ideia é que a gente tem um crescimento exponencial, e se esse crescimento exponencial for muito acelerado, muitas pessoas se contagiam ao mesmo tempo e a gente ultrapassa muitas vezes a capacidade do sistema de saúde em socorrer essas pessoas. Por tanto é fundamental achatar a curva.

Eu quero dizer para vocês que nós já ultrapassamos esse limite em relação a outra coisa. Que são justamente o limite do uso de terra, água, possibilidade de emissões de carbono, etc. Nós passamos da capacidade de carga do sistema terrestre, então nós entramos justamente na situação que é o paralelo ao SUS entrar em colapso, de não ter leito para atender pessoas em pandemia. Nós estamos nessa situação em relação ao sistema terra. Então mais do que nunca é necessário supressão para achatar essa outra curva. Porque a irreversibilidade, e a gravidade do processo, é muitas vezes maior do que a da pandemia.

E aí eu queria fazer mais um paralelo. Esse paralelo tem a ver com a supressão que a gente tá fazendo aqui como a principal e a única alternativa para conter, para limitar, o alcance do contágio pelo coronavírus, para desacelerar a crise pandêmica, que é supressão. Supressão significa, obviamente, que muita gente fica em casa, mas não só isso, que muitas atividades econômicas deixam de ser realizadas. E eu queria que a gente pensasse muito seriamente nisso. O que é que de fato é essencial?
Eu acredito que a supressão que a gente está experimentando mostra que uma quantidade enorme da produção, do trabalho, que é realizado é desnecessário, é perdulário. Expõe a nu uma, algo que eu tenho dito há muito tempo, nós temos muito trabalho morto e que, portanto, a altíssima produtividade do trabalho permitiria que nós tivéssemos jornadas de trabalho muito mais curtas do que nós temos hoje, para produzir aquilo que de fato é necessário. E aí, necessário incluo a produção de conhecimento, a produção artística, eu incluo tudo isso. Não apenas alimento, não apenas vestimento, não apenas bens essenciais materiais, mas eu falo também de bens essenciais imateriais.

Percebam que a gente poderia estar falando, e eu não sei o que é que aconteceu com o movimento sindical porque quando eu era jovem o pessoal falava de jornada de trabalho de 40h, eu não sei cadê o movimento sindical que não fala em jornada de trabalho de 20h, de 15h, em final de semana de três dias. Em dois períodos de férias de 45 dias por ano. Isso é absolutamente viável. Dada a produção, a produtividade de trabalho hoje. E mais, isso é totalmente viável, especialmente se a gente for capaz de mudar a lógica da produção de alimentos, de uma dieta baseada na carnificina para uma dieta baseada em vegetais, cobrindo muito menos área e possibilitando a restauração, a recuperação, do metabolismo com a natureza.

E aí eu queria usar aqui também uma citação de um pensador que eu penso muito necessário para entender os dias de hoje que é o Bruno Latour. Num artigo que ele publicou agora, nesse último domingo, ele diz algo mais ou menos assim “Ficou provado que é possível em questão de semanas suspender em todo o mundo, e ao mesmo tempo, um sistema econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar”. Eu acho que essa lição é fundamental que a gente tire de tudo isso. Nós temos uma enorme economia voltada no aumento eterno do PIB, baseada na lógica de crescimento infinito, e é uma lógica tão absurda que se nós pensarmos bem, um revólver e os projéteis desse revólver, algo cujo único objetivo é matar, desde que isso seja produzido e comercializado, isso entra na conta do PIB. Mas uma fruta que você colher no quintal, ou se você tiver uma pequena hortinha, mesmo dentro de um apartamento, e colher uma pimenta, ela não entra no PIB. Então tem alguma coisa muito errada nisso. É uma coisa muito errada em que itens supérfluos, itens de luxo, tudo que é perdulário, entra na contabilidade do PIB e um rio limpo não. Na verdade o rio vai entrar no PIB quando acontecer o assassinato do rio, como o rio doce, com o crime da Samarco.

E dentro do PIB poderia entrar, por exemplo, uma descontaminação do rio. Vejam que coisa mais absurda. O ato de exterminar um rio e suas formas de vida e “recuperá-lo” ou aproximá-lo do que ele era antes, ou seja, algo que é basicamente voltado para um estado parecido ao original só que mais empobrecido, isso entra duas vezes no PIB. Deixar o rio como tá não. É uma lógica econômica absurdamente irracional. E aí eu vou fazer aqui as mesmas perguntas que o Latour fez ao final desse artigo, traduzido pela minha querida Déborah Danowski lá da PUC do Rio. As perguntas são, primeira, “Quais as atividades agora supensas que você gostaria que não fossem retomadas?”. Segunda pergunta, “Descreva porque essa atividade lhe parece prejudicial, supérflua, perigosa, sem sentido, e de que forma o seu desaparecimento, suspensão, substituição, tornaria outras atividades que você prefere, mais fáceis”. Terceira pergunta, “Que medidas você sugere para facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores, empregados, agentes, empresários, que não poderão mais continuar nas atividades que você está suprimindo?”. Quarta, “Quais as atividades agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas, retomadas, ou mesmo criadas a partir do zero?”. Quinta, “Descreva porque essa atividade lhe parece positiva e como ela torna outras atividades que você prefere mais fáceis, harmoniosas, pertinentes, etc?”. E a sexta e última, “Que medidas sugere para ajudar os trabalhadores, empregados, etc, para retomar, desenvolver, criar, essas novas atividades?”.

São as perguntas que o Latour fez, e acho que é o dever de casa coletivo. É o dever de todo mundo trabalhar para respondê-las, não apenas em teoria, respondê-las em prática. Porque, com efeito, nós entramos em algo que vários autores chamam de ruptura metabólica e Latour chama de mutação ecológica, tem vários termos disso, mas que basicamente tem a ver com o conceito de antropoceno. Nova época geológica em que a humanidade, obviamente não a humanidade por igual, se tornou força dominante sobre os fluxos geológicos.
É importante a gente obviamente fazer uma sinalização nessa questão da desigualdade, para a gente ter um pensar que o termo aí se refere a uma humanidade homogênea, não. Para a gente ter uma ideia um integrante da camada dos dez por cento mais ricos dos Estados Unidos emite nada menos do que quinhentas vezes mais CO2 na atmosfera do que um habitante pobre, do habitante de um país africano pobre como Chade, República Centro Africana, Ruanda, e outros. Então, veja, não é por igual.

O antropoceno levou justamente à ultrapassagem da capacidade da terra. Eu queria que a gente pensasse que não há alternativa para nós se nós pensarmos como o alienígena. A descrição da pegada humana nas rochas é uma descrição feita por um alienígena, que nos vê de fora. Nós não podemos pensar como o alienígena, nós precisamos pensar como o indígena. Recuperando, justamente, a oposição feita por Eduardo Ribeiro de Castro. Ou seja, nós precisamos pensar em transformar a história a partir de dentro. O que requer outro pensamento, outra forma de ver o mundo. E talvez nesse sentido olhar de fora seja possível e necessário apenas da maneira como Karl Sagan, e eu queria encerrar com isso. Como Karl Sagan nos brindou ao chamar o posicionamento da câmara espacial para a terra e capturar a terra num momento de quase fragilidade. Como um pálido ponto azul.

E eu queria fechar com as palavras de Sagan:
“Olhem de novo esse ponto. É aqui a nossa casa. Somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem conhece, qualquer um sobre quem você já ouviu falar. Cada ser humano que já existiu viveu a sua vida nele. O conjunto da nossa alegria, do nosso sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas. Cada caçador e coletor, cada herói e covarde. Cada criador e destruidor da civilização. Cada rei e camponês. Cada jovem casal de namorados. Cada mãe e pai. Cada criança cheia de esperança. Inventor e explorador. Cada professor de ética, cada político corrupto. Cada super astro, cada líder supremo. Cada santo e pecador, na história da nossa espécie viveu ali. Em um grão de pó suspenso num raio de sol. Já foi dito que a astronomia é uma experiência de humildade e criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção humanado que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim destaca a nossa responsabilidade de sermos mais amáveis, uns com os outros, e para preservarmos e protegermos o pálido ponto azul. Único lar que conhecemos até hoje.”

E é precisamente fazendo a negação do alienígena, afirmando o indígena, colocando o conhecimento e o pensamento tradicional, personalizado por Ailton Krenak, com o pensamento científico trazido por Karl Sagan que eu queria encerrar.

Live realizada em 01 de abril de 2020 no canal @filosofiaonface

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Ambiente presente? histórias e resiliências da natureza




AMBIENTE PRESENTE: HISTÓRIAS E RESILIÊNCIAS DA NATUREZA

Confiram o time escalado para nossa live amanhã (05/06) às 16h!! A transmissão será em nossa página no Facebook, fiquem ligados para não perder!!

#anpuh5dejunho
#anpuhambiental

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A origem da pandemia e a história ambiental

Exibição de animais exóticos. 1774
Acervo do Museu Britânico.
A atual pandemia nos faz lembrar de advertências proferidas pelos cientistas de que doenças altamente infecciosas com poder de devastar e desarticular as sociedades humanas estão diretamente relacionadas com a perda de biodiversidade e as profundas transformações dos ambientes naturais em várias partes do planeta. 

Ainda não sabemos se foi realmente o pangolim o animal hospedeiro do vírus até chegar aos seres humanos. O que temos certeza é que a infecção ocorreu na cidade chinesa de Wuhan. Este post é para pensarmos como a história ambiental se apresenta como uma das áreas do conhecimento mais importantes para ampliarmos nossa compreensão sobre a pandemia do novo coronavírus.

Uma breve e recente história das doenças nos mostra que vírus transmitidos de animais a humanos tem causado grandes problemas, como por exemplo o Ebola, HIV, SARS e MERS. Mais da metade das enfermidades acometidas pelos humanos tem ligação com os outros animais. Isso não nos dá o direito de pensarmos que há culpa nos animais selvagens, mas nos leva a questionar como a interação muitas vezes desnecessária entre humanos e outras espécias cria condições para cenários catastróficos. 

A história ambiental apresenta como as civilizações tem mantido em exposição animais exóticos nos mercados de grandes cidades, seja para comercializar ou mesmo ostentar poder por parte de líderes políticos ou membros das elites. Essa perspectiva é importante para refletirmos sobre as consequências da devastação de ambientes ecologicamente equilibrados para servir aos interesses irresponsáveis do capitalismo. 

Circula pela internet a explicação de que os chineses teriam criado em laboratório o novo coronavírus. Nossa opinião é de que essa compreensão contribui para deixarmos em segundo plano a discussão sobre as consequências danosas do avanço humano em áreas ecologicamente equilibradas. Questões como a mudança climática são deixadas de lado quando resumimos o debate em teorias da conspiração. 

Nesse sentido, a história pode contribuir para ampliarmos nossa compreensão sobre esses eventos catastróficos quando reconhece a importância crucial da relação humanos-natureza. É a perspectiva ambiental que nos possibilita ter um entendimento ainda mais profundo sobre a relação das civilizações humanos e as outras espécias. Acreditamos que esse é um bom caminho para repensarmos nosso comportamento como mais um dos moradores desse planeta. 

terça-feira, 7 de abril de 2020

O que esperar de “A Peste”?


Marlison Souza Moraes


Considerada a obra prima do autor Albert Camus (1913-1960), “A Peste” (1947) publicada ao final da primeira metade do século XX, aborda questões que refletem diretamente no próprio contexto pandêmico em que vivemos.

O livro discute sobre a história da cidade de Oran, localizada na Argélia, onde os moradores são pegos de surpresa ao ver o local onde moram ser atingido de forma significativa e cruel por uma peste. Camus constrói a narrativa da obra em torno dessa cidade, pois ao longo das primeiras páginas, ele narra que a localidade em questão possui um estilo de vida muito monótono, marcado pela “mesmice” da população que encara com estranheza a chegada da peste no território. No começo da epidemia, os principais vetores constituíam-se por ratos que eram encontrados mortos pelas ruas e demais cantos da cidade. Porém, posteriormente ela atinge também a própria população local que tem suas vidas totalmente modificadas por conta desse impasse.

Além disso, vale ressaltar que a obra é considerada uma própria alegoria à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, por isso o autor é tão minucioso em descrever temas sobre a vida urbana, impacto político e cultural da peste, assim como a incógnita que fica em meio à epidemia. Contudo, em meio ao caos instalado, os trabalhadores descobrem a solidariedade em meio à peste que assola a cidade, uma vez que individualismo é uma característica recorrente nessas situações. Por isso, o livro é bem feliz em fazer uma reflexão sobre a importância de ajudarmos uns aos outros num período tão difícil.

Dessa forma, o que podemos esperar do livro A Peste? Definitivamente, uma obra que retrata de maneira crucial e sensível a questão do impacto da peste que atinge uma cidade tranquila, construindo uma metáfora em torno do Nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e seus efeitos negativos. Pois, como disse o autor: "...o bacilo da peste não morre, nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis, na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada... viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz..." Ou seja, a peste não escolhe gênero, raça, ou classe social, se não nos atentarmos para o passado e para as medidas  de prevenção, teremos várias Oran no mundo.

Marlison é estudante do curso Licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA) Campus Ananindeua. É membro do Grupo de Pesquisa CNPq  História e Natureza. Atualmente desenvolve pesquisa sobre os temas: História, Literatura e Gênero na Amazônia durante o período Civil Militar.