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Urban Development, 2004. Pen and ink, 6 x 12" Disponível em: http://www.lesyeuxdumonde.com |
por Bruno
Capilé*
A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. (Marina Colasanti- Eu sei, mas não devia. 1996).
Esse trecho segue o lamento de como nos acostumamos com aspectos ruins de
nossas vidas, em particular o cotidiano de uma vida urbana desgastada, que se
perde nas horas diárias nos engarrafamentos, na falta do horizonte entre os
prédios, na nossa falta de contato com as centenas de pessoas que passam ao
nosso lado. É na cidade onde o esforço humano de transformar o próprio ambiente
se confunde com as diferentes maneiras do homem reconstruir a si mesmo. As
vicissitudes humanas e urbanas moldam-se mutuamente, e somos facilmente levados
a crer que a cidade não tem mais natureza. Assim torna-se mais comum
associarmos de maneira óbvia muitas das atividades de nossa espécie como
sinônimo de destruição ambiental, sendo o território urbano o maior símbolo de
impacto humano na natureza. Quais seriam as vantagens de embasar nossos
pensamentos e atitudes segundo uma dicotomia natureza-sociedade? Será que se buscarmos
apagar tal polaridade poderíamos ter uma perspectiva mais justa ambientalmente
e socialmente?
Talvez a própria ideia de natureza tenha auxiliado o pensamento ocidental
a definir o que seria o humano, o civilizado. Esta autodefinição por meio do Outro
tem sido um padrão desse raciocínio totalitário – por exemplo a noção de
Ocidental em contraposição do Oriental. A necessidade de nos sentirmos
diferentes caminhou junto com a necessidade de dominar o Outro. Da mesma
maneira que americanos, africanos e asiáticos foram colonizados, também os seus
ambientes o foram.
A cidade mantém este mesmo raciocínio com seu Outro, o campo. Moldando
esta relação, que sempre foi assimétrica, com mais investimentos na urbe. Hoje,
esse campo mais próximo da cidade foi engolido pela mesma, enquanto o mais
afastado foi engolido pela agricultura industrial. O quadro abaixo, do suíço
Christophe Vorlet, mostra um campo que não existe mais, uma outra releitura do
englobamento urbano.
Vorlet possivelmente não imaginou que esta obra, Urban Development de
2004, seria apropriada e ressignificada com outro nome nas redes sociais
brasileiras: Vidas Secas. A alusão à obra de Graciliano Ramos é uma ligação
óbvia com a paisagem desolada. O cenário ao fundo, de açude dessecado, como uma
consequência natural, se transforma lentamente conforme nossos olhos percolam
as rachaduras até a parte inferior do quadro: uma área altamente urbanizada.
Num loop interminável de causa e consequência nos perguntamos: como as cidades
cresceram tanto assim? Será por causa da crise ambiental rural, ou será o
crescimento da cidade a causa da devastação no campo? Certamente ambos
acontecimentos estão tão - misturados que, como no quadro, fica difícil
perceber quando começa um e termina o outro. De repente, talvez, devêssemos
tentar superar a polaridade de pensarmos causas e consequências como coisas
separadas, e até mesmo antagônicas. Talvez uma nova visão nos ajude a superar a
antiga dicotomia natureza-sociedade.
Será que faz sentido interpretar o sucesso da sociedade a partir do
fracasso da natureza, ou até mesmo aceitar a destruição da natureza como
consequência do progresso da sociedade? Vamos reconsiderar, mesmo que por um
momento, a presença da natureza na sociedade. Vamos pensar em como fazemos
parte da natureza e como ela faz parte de nós. Ou seja, como um ambiente urbano
– por exemplo um rio extremamente poluído – se faz presente em nossa
corporalidade, e como nossos atos afetam este ambiente. E se, em vez de
pensarmos na degradação, ou destruição, deste rio, considerássemos a perda das características
e relações ecológicas que o faziam belo: seu cheiro, seus peixes, suas mudanças
naturais. Dessa maneira, teríamos que pensar também nas mudanças das
características do rio urbano, principalmente o maior aporte de matéria
orgânica, e de poluentes químicos. A vida ainda se mantem neste rio, agora rica
em microorganismos patológicos ao homem. Entender como somos afetados por tudo
isso permite ver a complexidade e riqueza de nossas interações. Lidar com isso
de maneira clara, com o auxílio de um vocabulário mais preciso, faz com que
nossas narrativas se tornem mais justas. Pois daí não veríamos um rio morto
somente: e sim um rio extremamente poluído por nós mesmos, que afeta nossa
saúde pública de uma maneira também injusta e assimétrica.
A maneira como olhamos para o Outro diz muito sobre como queremos ser
percebidos. Proponho incluir este Outro em nós mesmos, não somente ao nosso
lado, mas dentro do coletivo de tudo isso. As palavras que determinam um
ambiente degradado (feio, doente, insustentável) possuem em seus antônimos os
meios que podem colaborar para um ambiente não-degradado (bonito, sadio,
sustentável). E assim, ao incluir o social no natural, delineamos de maneira
mais eficaz nosso senso de justiça ambiental e social.
* O autor é doutorando em História Social no PPGHIS-UFRJ, onde desenvolve pesquisa sobre a relação entre História e Natureza com destaque para o tema dos rios.