O Círio de Nazaré é a maior festa católica. Acontece no mês de outubro na cidade de Belém do Pará, região Norte do Brasil. Realizada no coração da Amazônia, os registros históricos apontam sua primeira edição em 1793. Desde 1882, a cada ano os coordenadores dessa festa religiosa apresentam ao público um cartaz oficial da festividade que é distribuído ao fiéis.
Umas das imagens que compõem alguns dos cartazes faz referência a Lenda de Nazaré. Esse episódio teria acontecido no dia 14 de setembro de 1182 quando Dom Fuas Roupinho, alcaide do castelo de Porto de Mós (uma espécie de governador ou juiz de uma vila fortificada na Idade Média), caçava à cavalo junto ao litoral foi envolvido por um nevoeiro que o impedia de enxergar que estava correndo risco por estar perto de um despenhadeiro. Nesse momento Dom Fuas avistou um veado e começou uma perseguição que o levou ao topo de uma falésia. Em meio ao denso nevoeiro, ele rogou pela Virgem Maria que lhe concedeu o milagre de se salvar da queda.
A Lenda de Nazaré tem outros desdobramentos que explicam a origem da devoção a Nossa Senhora de Nazaré. No entanto, já nos é suficiente para pensarmos algumas questões em relação a história e o meio ambiente. Em seus estudos, o prof. Geraldo Mártires Coelho destaca uma provável relação entre essa veneração e as águas. Seja o Oceano Atlântico que fazia limite às falésias em Nazaré, seja o igarapé onde uma imagem de Maria com o Menino Jesus foi encontrado na Amazônia no século XVIII. Há também relatos que apontam para a devoção de navegantes que avistavam essas falésias e clamavam por socorro à Virgem.
Outro ponto que nos permite pensar sobre a dimensão ambiental da Lenda de Nazaré se refere ao significado da caça para a sociedade aristocrática do século XII. Documentos de época demonstram que a caça foi uma prática muito comum entre os membros que compunham a nobreza dessa região. Ser um caçador eficiente deveria ser uma virtude do Rei. Havia territórios destinados para esse tipo de atividade que significava status social e diferenciação entre os personagens que compunham aquela sociedade medieval.
Os veados aparecem em destaque nos documentos históricos que informam essa atividade predatória. Outas espécies perseguidas que podemos identificar são: porcos, lebres, lobos e perdizes. Isso nos permite conhecer parte da fauna das florestas do litoral português, especialmente em Nazaré.
O cartaz do Círio de Nazaré do ano de 1855 recupera essa relação entre o Milagre de Nazaré e os naufrágios, lembrando do episódio em que o Brigue S. João Batista passou apuros no litoral do Pará. As iconografias apresentam sempre Dom Fuas Roupinho montado sob seu cavalo, outra espécie indispensável tanto para a atividade de caça quanto para denotar virtude aristocrática no âmbito do que poderíamos chamar de "diversão" mas também treinamento para guerra, demonstrando virilidade marcial.
Assim, as iconografias sobre a Lenda de Nazaré também podem nos revelar as falésias como uma geomorfologia da região que participou da construção do Milagre não apenas como um cenário estático, mas sim um elemento central da narrativa mítica. Abre-se, portanto, nossa compreensão para a dinâmica social de Portugal Medieval, menos com seus personagens encastelados e mais em interação profunda, simbólica e até sobrenatural com a natureza.
Referências
COELHO, Maria Helena da Cruz; RILEY, Carlos Guilherme, «Sobre a caça medieval», Estudos Medievais, nº9, Porto, 1988.
COELHO, Geraldo Mártires. Uma crônica do maravilhoso: legenda, tempo e memória no culto da Virgem de Nazaré. 1998.