Sueny
Diana Oliveira de Souza*
Ali, na vida cotidiana, o ir e vir sobre o rio é constante. Mas a
relação com o rio, com as estradas e a ocupação tem sofrido grandes impactos e
alterado a minha percepção sobre estes espaços.
Parto da minha infância na metade da década de 1990, quando vivia em uma
cidade cuja sede municipal em quase nada destoava da sua zona rural, exceto
pelo fato de possuir iluminação elétrica e possibilitar o acesso a alguns
serviços básicos de saúde e educação. Uma cidade onde grande parte dos
moradores retirava seu sustento das plantações na zona rural, que tinha na base
da economia a agricultura familiar, o pequeno comércio e o funcionalismo
público. Havia pouco mais de 15 mil habitantes em toda sua extensão territorial,
as ruas praticamente sem pavimentação, onde galinhas, patos e animais de
estimação circulavam, e quase todas as tardes também eram ocupadas pelo gado de
rebanhos deslocados das áreas abertas onde pastavam para as fazendas onde
ficavam confinados.
Um lugar que antes do raiar do sol era invadido por trabalhadores
agrícolas que se deslocavam de bicicleta ou a pé para suas roças localizadas em
comunidades no entorno do centro urbano. Era quase uma romaria que se repetida
todos os dias, pela manhã e à tarde na volta para casa, exceto aos domingos.
Num período em que as estradas eram caminhos um pouco mais largos por onde
circulavam produtos agrícolas em geral, carregados em cavalos, burros ou
bicicletas.
E foram por essas estradas que cumpri as jornadas de deslocamento para
chegar à casa de meus avós e às terras de onde vinham nossos sustentos com o
trabalho na roça de meu pai, avô, tios, primos e tantos outros familiares de
sangue ou adquiridos pelas relações sociais e de trabalho.
O sítio localizava-se (e ainda existe no mesmo local) a oito quilômetros
do centro urbano de Ourém, na margem do rio que agora está sob a jurisdição do
município de Capitão Poço. Quase um acaso, fruto do processo de desanexação das
terras, pois o fato de a comunidade familiar Santo Antônio localizar-se na
margem do rio que não se encontra sob a jurisdição de Ourém, em nada
influenciava na dinâmica cotidiana, pois as vendas e compras dos produtos
agrícolas ocorriam nesta cidade, que também era lugar de moradia em alguns dias
da semana. Era também a sede da cidade, um lugar que recebia procissões de
pessoas para as missas aos domingos pela manhã. As pessoas que cruzavam o rio e
o percebiam ora como um aliado elemento da natureza, ora como um desafio que
precisava ser transposto nos deslocamentos contínuos.
As relações com o rio misturavam-se às relações de sociabilidades, que eram
reafirmadas sempre quando fosse lhe transpor gritava-se de uma margem a outra
pedindo aos moradores que fizessem nossas travessias em canoas. Embora os
moradores desta localidade não se incluíssem na definição de ribeirinhos, provavelmente
por não terem na relação com o rio a base fundamental para a subsistência de seus
moradores, o rio era primordial na dinâmica cotidiana e representava a
proximidade com a pesca artesanal, fonte essencial para a alimentação, que, aliada
ao que se produzia nas roças garantia a sobrevivência dessas famílias. E as relações
se alteravam dependendo do caminho a ser trilhado ou em que altura o rio seria
atravessado.
O final da década de 1990 e início dos anos 2000 alteraram a relação com
o rio e ampliaram a importância atribuída às estradas. A ponte de madeira que
ligava Ourém a Capitão Poço foi substituída por uma de concreto, depois de quase
ter sido arrastada pela força das águas de março no inverno amazônico. Desde
então, os caminhos onde antes passavam bicicletas e cavalos passaram a ser
alargados para que pudessem ser trilhados por carros e caminhões que começavam
a se tornar mais frequentes e precisavam vencer as distâncias entre o centro
urbano e os sítios e fazendas nos arredores rurais localizados em Ourém ou
Capitão Poço.
As transformações espaciais da cidade foram acontecendo lentamente. As áreas
abertas que antes recebiam gado para pastar ou eram usadas como campo de
futebol por inúmeras crianças passaram a ser ocupadas com casas de moradia. Uma
expansão que foi marcada pelo fortalecimento do comércio e migração de pessoas,
muitas provenientes das zonas rurais, que vieram para Ourém trabalhar nos
comércios ou nas seixeiras que passavam por um processo de ampliação.
As seixeiras passaram a se proliferar nas zonas rurais de Ourém, nas
estradas que interligavam a São Miguel do Guamá, Capanema, Bonito e Capitão
Poço. Grande parte desses estabelecimentos se localizavam seguindo o curso do
rio Guamá, em diferentes locais da sua extensão.
Acompanhando esse novo momento na economia, veio a ampliação do número
de habitantes na cidade e uma redefinição das zonas rurais, pois as pequenas
propriedades rurais pressionadas pela corrida em busca do seixo deixaram de
existir, o que levou muitos trabalhadores antes rurais a migrar para o núcleo
urbano a fim de venderem sua força de trabalho para os donos das seixeiras.
As mudanças se deram no âmbito espacial, econômico, nas relações de
trabalho e sociais, assim como esse processo trouxe uma face da violência que
Ourém não conhecera até então. A cidade que não era assombrada por assaltos até
o início dos anos 2000, passou a vivenciar o medo que se tornou frequente. E os
meios de locomoção antes utilizados em sua maioria bicicletas foram
substituídos por motos, que se multiplicavam cada vez mais.
E a relação com o rio? Ah! De elemento da natureza importante para a
subsistência e que precisava ser transposto nos trajetos para as zonas rurais,
passou a se restringir quase que exclusivamente como fornecedor de água para
lavar o seixo nas seixeiras, que na segunda década dos anos 2000 ocuparam as
margens de quase todas as estradas e por todas as suas respectivas extensões.
E nesse processo vi as terras antes trilhadas a pé no percurso até a
casa dos meus avós ganharem estradas alargadas para possibilitar o trafego de
carretas. Vi a natureza ser completamente alterada, com igarapés assoreados e
as margens do Guamá completamente degradadas. Vi ainda barragens de resíduos da
exploração do seixo serem construídas quase que às cegas e ameaçarem as
comunidades que teimam em subsistir. E vejo as comunidades que ainda resistem
terem suas atividades alteradas. Primeiro, porque os trabalhos agrícolas cada
dia têm menos importância para a vida cotidiana e a opção de trabalhar para os outros
torna-se mais atraente, assim como a venda das terras era o meio de conseguir
uma quantia em dinheiro de forma mais rápida. Segundo, porque algumas
comunidades ainda se mantêm por serem terras de herança e ainda contam com
pessoas idosas, cujo apego e relação com a terra são ancoradas em memórias de
tempos idos...
As empresas de exploração de seixo são empreendimentos que se instalam, aparentemente,
sem nenhuma fiscalização ambiental têm transformado o espaço urbano e o rural
de uma Ourém que continua pequena e cada vez mais enfrenta grandes problemas
sociais, que parecem ser minimizados por ações como as vivenciadas a partir de
2010, quando levou energia elétrica às zonas rurais. E, como garantem empregos
precários a uma parcela da população, provavelmente foram ignoradas tanto pelos
habitantes quanto pelo poder público, que preferem fechar os olhos frente aos
crimes ambientais, condições de trabalho precárias e falta de assistência e
cumprimento da legislação trabalhista.
Caminhar por Ourém hoje é para mim viver um conflito constante entre as
memórias de uma vida simples de grande interação com a natureza, de pouco
acesso a bens materiais, de liberdade de circulação, que percebia a ida para
igarapés e brincadeiras nos banhos de rio as faces do cotidiano. E um presente
marcado por transformações sociais que trazem fortes impactos na natureza, com
alterações nas paisagens e sentido atribuídos à relação com o rio e
igarapés.
Saí de Ourém em busca dos meus sonhos ainda na adolescência, no início
dos anos 2000. Trilhei caminhos de pesquisa na graduação, mestrado e doutorado
que hoje me fazem enxergar Ourém, suas fronteiras administrativas, problemáticas
e relações sociais que se refazem, como em toda sociedade, mas para mim
deixaram e deixam tristes expectativas, sobretudo por ser uma cidade marcada
pela passividade, cujas transformações nas paisagens e degradação ambiental que
têm poluído e acabado com igarapés e vêm desmatando e assoreando as margens
ainda estreitas do Guamá de forma bem acelerada parecem não ser percebidas ou
são facilmente ignoradas.
E, a vida segue ancorada em uma perspectiva de crescimento econômico
ínfimo, com pouca ou quase nenhuma qualidade de vida, em uma relação com a
natureza que se restringe a frequentar os balneários que se multiplicam e, para
a sua existência, colocam em risco a existência dos mananciais que são represados
para atender ao público, tendo suas margens desmatadas para a construção de
bares e barracas. E, quase todos os anos, em períodos de águas altas no inverno
amazônico, rios e igarapés são notados quando transbordam, cobrem os bancos das
praças e invadem as casas, alterando o ritmo de vida de pessoas, com isso,
muitos preferem acreditar que as forças das águas permanecem preservadas.
*A autora é professora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará / campus de Ananindeua.