sexta-feira, 10 de abril de 2020

A origem da pandemia e a história ambiental

Exibição de animais exóticos. 1774
Acervo do Museu Britânico.
A atual pandemia nos faz lembrar de advertências proferidas pelos cientistas de que doenças altamente infecciosas com poder de devastar e desarticular as sociedades humanas estão diretamente relacionadas com a perda de biodiversidade e as profundas transformações dos ambientes naturais em várias partes do planeta. 

Ainda não sabemos se foi realmente o pangolim o animal hospedeiro do vírus até chegar aos seres humanos. O que temos certeza é que a infecção ocorreu na cidade chinesa de Wuhan. Este post é para pensarmos como a história ambiental se apresenta como uma das áreas do conhecimento mais importantes para ampliarmos nossa compreensão sobre a pandemia do novo coronavírus.

Uma breve e recente história das doenças nos mostra que vírus transmitidos de animais a humanos tem causado grandes problemas, como por exemplo o Ebola, HIV, SARS e MERS. Mais da metade das enfermidades acometidas pelos humanos tem ligação com os outros animais. Isso não nos dá o direito de pensarmos que há culpa nos animais selvagens, mas nos leva a questionar como a interação muitas vezes desnecessária entre humanos e outras espécias cria condições para cenários catastróficos. 

A história ambiental apresenta como as civilizações tem mantido em exposição animais exóticos nos mercados de grandes cidades, seja para comercializar ou mesmo ostentar poder por parte de líderes políticos ou membros das elites. Essa perspectiva é importante para refletirmos sobre as consequências da devastação de ambientes ecologicamente equilibrados para servir aos interesses irresponsáveis do capitalismo. 

Circula pela internet a explicação de que os chineses teriam criado em laboratório o novo coronavírus. Nossa opinião é de que essa compreensão contribui para deixarmos em segundo plano a discussão sobre as consequências danosas do avanço humano em áreas ecologicamente equilibradas. Questões como a mudança climática são deixadas de lado quando resumimos o debate em teorias da conspiração. 

Nesse sentido, a história pode contribuir para ampliarmos nossa compreensão sobre esses eventos catastróficos quando reconhece a importância crucial da relação humanos-natureza. É a perspectiva ambiental que nos possibilita ter um entendimento ainda mais profundo sobre a relação das civilizações humanos e as outras espécias. Acreditamos que esse é um bom caminho para repensarmos nosso comportamento como mais um dos moradores desse planeta. 

terça-feira, 7 de abril de 2020

O que esperar de “A Peste”?


Marlison Souza Moraes


Considerada a obra prima do autor Albert Camus (1913-1960), “A Peste” (1947) publicada ao final da primeira metade do século XX, aborda questões que refletem diretamente no próprio contexto pandêmico em que vivemos.

O livro discute sobre a história da cidade de Oran, localizada na Argélia, onde os moradores são pegos de surpresa ao ver o local onde moram ser atingido de forma significativa e cruel por uma peste. Camus constrói a narrativa da obra em torno dessa cidade, pois ao longo das primeiras páginas, ele narra que a localidade em questão possui um estilo de vida muito monótono, marcado pela “mesmice” da população que encara com estranheza a chegada da peste no território. No começo da epidemia, os principais vetores constituíam-se por ratos que eram encontrados mortos pelas ruas e demais cantos da cidade. Porém, posteriormente ela atinge também a própria população local que tem suas vidas totalmente modificadas por conta desse impasse.

Além disso, vale ressaltar que a obra é considerada uma própria alegoria à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial, por isso o autor é tão minucioso em descrever temas sobre a vida urbana, impacto político e cultural da peste, assim como a incógnita que fica em meio à epidemia. Contudo, em meio ao caos instalado, os trabalhadores descobrem a solidariedade em meio à peste que assola a cidade, uma vez que individualismo é uma característica recorrente nessas situações. Por isso, o livro é bem feliz em fazer uma reflexão sobre a importância de ajudarmos uns aos outros num período tão difícil.

Dessa forma, o que podemos esperar do livro A Peste? Definitivamente, uma obra que retrata de maneira crucial e sensível a questão do impacto da peste que atinge uma cidade tranquila, construindo uma metáfora em torno do Nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e seus efeitos negativos. Pois, como disse o autor: "...o bacilo da peste não morre, nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis, na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada... viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz..." Ou seja, a peste não escolhe gênero, raça, ou classe social, se não nos atentarmos para o passado e para as medidas  de prevenção, teremos várias Oran no mundo.

Marlison é estudante do curso Licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA) Campus Ananindeua. É membro do Grupo de Pesquisa CNPq  História e Natureza. Atualmente desenvolve pesquisa sobre os temas: História, Literatura e Gênero na Amazônia durante o período Civil Militar.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Carlos Magno no igarapé do Cucuí

Aldrin Moura de Figueiredo* 

Hoje, 2 de abril, é o aniversário de Carlos Magno. Licença da quarentena, mas tem reza, palma e flauta para D. Carlos Magno no igarapé do Cucuí em Alenquer. Os antigos pajés e os antigos vòduncì (mejitó, doté e doné) do Pará e do Maranhão lhe devem grande afeição. Carlos Magno foi o primeiro Imperador do Sacro Império Romano de 800 até sua morte, além de Rei dos Lombardos a partir de 774 e Rei dos Francos começando em 768. 





A denominação dinastia Carolíngia, que pelos sete séculos seguintes dominou a Europa, no que veio a ser posteriormente chamado Sacro Império Romano-Germânico deriva do seu nome em latim "Carolus". Por meio das suas conquistas no estrangeiro e de suas reformas internas, Carlos Magno ajudou a definir a Europa Ocidental e a Idade Média na Europa. Tudo isto vasta glória, legenda e parlenda. Mas, como bem disse Câmara Cascudo, foram suas histórias e seus mitos que conquistaram o interior do Brasil no século XIX. 


O livro Carlos Magno e os doze pares de França chegou ao sertão e à floresta, em lombo de jumento e em canoa. E com essas histórias vieram seus heróis, muitos dos quais saídos da Canção de Rolando, ou de La chanson de Roland, como querem os franceses. Todo mundo deveria ler um dia. É um poema épico composto no século XI em francês antigo (com muitas adaptações), sendo a mais antiga das canções de gesta escritas em uma língua românica. Teve enorme influência na Idade Média, inspirando muitas outras obras sobre o tema (a chamada "Matéria de França") por toda a Europa. Como outras canções do gênero, à época, era recitado por jograis nas cortes e nas cidades. Suas passagens estão desde as cavalarias brasileiras aos dramas de circo. O circo Transguará, nos anos 70, em Alenquer, apresentava o drama da princesa Floripes, adaptado das histórias de Roldão.




É tão lindo isso em forma popular. O poema narra o fim heroico do conde Rolando (lembra Roldão Junior), sobrinho de Carlos Magno, que padece junto ao seus homens na batalha de Roncesvales, travada no desfiladeiro do mesmo nome contra os sarracenos. A base histórica do poema é uma batalha real, ocorrida em 15 de Agosto de 778 entre a retaguarda do exército de Carlos Magno, sob o comando de Rolando, um dos Doze Pares de França, que abandonava a Península Ibérica, e um grupo de montanheses bascos, que a chacinou. Embora tenha por base uma batalha cuja ocorrência é corroborada historicamente, o relato apresentado no poema não é muito fidedigno (ainda bem): os autores do massacre passaram de bascos a muçulmanos, e tanto essa alteração como o tom geral do poema justifica-se pelo contexto das Cruzadas e da Reconquista cristã da Península, que se presenciou no século XI. Justamente essa imensa história das cruzadas é o campo mítico onde se situam as entidades dessas fábulas no panteão religioso do Tambor de Mina e da Pajelança Cabocla da Amazônia. No passado, os nomes eram praticamente os mesmos canções de cavalaria - Carlos Magno, Rolando (quase sempre chamado de Roldão), sobrinho de Carlos Magno, Ganelão (Ganelon), o traidor, o Rei Marsílio (Marsile), rei mouro de Saragoça, o famoso Oliveiros (Olivier), o amigo íntimo e prudente de Rolando (esse calvaga ainda pelos campos de Alenquer), Turpino (Turpin), Baligante (Baligant), Emir de Babilônia, a tal Bramimunda, Rainha de Saragoça, capturada por Carlos Magno e convertida ao Cristianismo, Pinabel, que combate na ordália por Ganelão, e Thierry, que combate por Carlos Magno e Rolando no ordálio final. Aqui temos o querido Fernando Maués, que é muito sabido nesses assuntos de romances das cavalarias. Longa história, mas, hoje, ao entrar em sessões de cura ou festas de terreiro, essas figuras volta e meia aparecem agregadas às famílias de encantados, que virão com essa mesma legenda de Carlos Magno e seus inimigos Mouros. 



Os reis de Europa, agora chamados Senhores de Toalha, vestidos em belo richelieu, como D. Luís, Rei de França, D. Sebastião, D. Manuel (o venturoso), ou a Rainha Barba Soeira, de um lado, e de outro a Família de Turquia, de gente moura, descendentes do Rei da Turquia, ou Ferrabrás de Alexandria, como aparece nas canções de gesta. Muitas dessas histórias foram analisadas de modo profundo por Mundicarmo Ferretti, Anaíza Vergolino e mais recentemente por Taissa Tavernard de Luca. Eu, aqui e ali, dei encontro com essa gente no meu trabalho de mestrado. Se interesse tiverem é só perguntar pra professora Taíssa. Difícil no Pará alguém que não tenha ouvido falar na bela turca mais famosa de toda essa história - D. Mariana, a arara cantadeira da pajelança, chefa da esquadra da Marinha Brasileira e princesa de Istambul. É uma bela história das cruzadas contata de outro modo. Na verdade não sei, só sei que foi assim. Boa noite.

* Aldrin é professor do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia na Universidade Federal do Pará. Dentre outros títulos, publicou o livro 'A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileiras na Amazônia: 1870-1950'.