domingo, 10 de março de 2024

História e natureza em 'O menino e a garça'

Por Maria Eduarda e Mateus Evaldo


Os filmes do Studio Ghibli nos possibilitam refletir sobre nossa relação com os demais seres vivos e elementos naturais do planeta em que habitamos – e não seria diferente no último longa lançado pelo estúdio: “O Menino e a Garça” (2023). A animação, inspirada no livro de Genzaburo Yoshino ("Como Você Vive?"), narra a história do jovem Mahito, que vai morar na casa de campo do seu pai, para se refugiar da 2° guerra mundial no Japão, enquanto também enfrenta o luto pela morte da mãe. Levado pelas dificuldades de lidar com esse novo futuro, Mahito se envolve em uma jornada acompanhado por uma garça falante, em um mundo fantástico criado por uma grande rocha. Assim, o filme nos permite pensar os vínculos entre os seres humanos, não humanos e os aspectos geológicos na história do Japão.





As rochas sempre foram elementos da natureza importantes para os ancestrais japoneses. No período pré-animista, elas eram utilizadas para demarcar territórios, mas, com o passar do tempo, as pedras adquiriram propósitos místicos, sendo vistas como um canal de forças da natureza invisíveis e misteriosas para o mundo material. Durante o período animista, na ausência de templos e santuários, acreditava-se que as paisagens naturais mediavam o contato entre humanos e kami, divindades nativas do Japão, que diziam habitar nas formações naturais mais notáveis, como árvores muito antigas, grandes cachoeiras, rochas ou montanhas. No filme, isso pode ser associado à existência de uma rocha mágica gigante, que possibilitou a criação de um mundo situado na fronteira entre o plano espiritual e o terreno.





Com a influência do Budismo no mundo antigo japonês, as rochas não eram vistas como deuses em si, mas com a função de vetores, semelhantes a um campo magnético, para estabelecer contato e realizar acordos com eles, com a criação de jardins de pedras empilhadas de acordo com o simbolismo espiritual, e sabe-se que havia a necessidade de realizar rituais de purificação nestas rochas. As rochas são importantes na história do longa, podendo tecer referências à tradição mencionada, já que empilhar uma torre de pedras em miniatura, que deve estar purificada das forças do mal, é crucial para a sobrevivência do mundo fantástico do filme.


Para além dos aspectos simbólicos citados envolvendo a natureza, o filme também aborda como a intervenção humana pode impactar o meio ambiente, narrando a trama das garças, pelicanos e papagaios que, ao serem transportadas da realidade para o mundo fictício do tio-avô, encontraram dificuldades significativas para se ajustarem ao novo ambiente. A principal complicação dessas aves foi a incapacidade de se alimentarem dos peixes locais, resultando na busca por outras presas. Essa mudança na dieta das garças teve um efeito cascata, alterando completamente o equilíbrio ambiental da região, inclusive os seres humanos.



Por meio do recurso de antropomorfização, isto é, de atribuir características humanas às aves, os pelicanos do filme falam a língua humana, contando sua própria história, aproximando os não-humanos das formas de expressão de emoções humanas. Podemos visualizar isso na cena em que um pelicano ferido está prestes a ser atacado por Mahito, mas o impede ao narrar a história de sua espécie, levando o público a refletir sobre as pré-concepções acerca das condições de vida das aves naquele mundo, que anteriormente eram vistas como vilãs pelo garoto. A história dos pelicanos destaca não apenas os desafios enfrentados pelos animais ao serem deslocados, mas também ressalta a importância de considerar os impactos ecológicos das intervenções humanas. A narrativa exibe como as ações destinadas a criar mundos fictícios podem inadvertidamente desencadear desequilíbrios ambientais, ressaltando a responsabilidade humana na preservação da harmonia natural.


Referências

MANSFIELD, Stephen. Japanese stone gardens: origins, meaning, form. Tuttle Publishing, 2012.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Animais e as pinturas no século XIX


 Na Europa, durante a segunda metade do século XIX, há uma demanda por parte das famílias mais abastadas em registrar seus animais de estimação em quadros pintados por artistas experientes. Segundo Martina Pfleger (1991) o pintor austríaco Carl Pischinger (1823-1886) esteve envolvido diretamente nesse contexto, especializando-se em registrar animais em óleo e aquarela, tornando-o um dos artistas mais populares de Viena nesse tipo de trabalho. 

A maioria de suas pinturas é de representações de animais, com destaque para os cães e a tentativa de imortalizá-los nas telas, retratados em diferentes contextos. Muitos desses bichos assumem posições que nos remetem a gestos/poses humanos, como por exemplo uma cena em que o personagem está olhando pela janela, pretendendo apresentar uma descrição psicológica do animal . Até mesmo suas pinturas de gênero incluem representações de animais, mesclando humor e sentimentalismo. 

No destaque vemos o quadro 'Gute Freunde' ('Bons Amigos' sob a guarda do Belvedere Museum), contando com aves e cães em sua simplicidade, com destaque para um dos peludos vestido com uma fantasia, disfarce artístico - dando um ar carnavalesco para a cena. Isso também nos mostra como a relação entre humanos e outros animais movimentou o mercado de artes e criou um nicho para pintores de cenas com animais. 

Referências- Martina Pfleger: Landschaftszeichnungen Carl Pischingers in der Albertina. Studien zum Naturverständnis im Wien des 19. Jahrhunderts. 1991

- https://digital.belvedere.at/objects/2364/gute-freunde