sexta-feira, 18 de setembro de 2015

A cidade não para, a cidade só cresce

Urban Development, 2004. Pen and ink, 6 x 12"
Disponível em: 
http://www.lesyeuxdumonde.com

por Bruno Capilé*

A gente se acostuma à poluição, às salas fechadas de ar condicionado e ao cheiro de cigarros. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias de água potável. À contaminação da água do mar. À morte lenta dos rios. (Marina Colasanti- Eu sei, mas não devia. 1996).

Esse trecho segue o lamento de como nos acostumamos com aspectos ruins de nossas vidas, em particular o cotidiano de uma vida urbana desgastada, que se perde nas horas diárias nos engarrafamentos, na falta do horizonte entre os prédios, na nossa falta de contato com as centenas de pessoas que passam ao nosso lado. É na cidade onde o esforço humano de transformar o próprio ambiente se confunde com as diferentes maneiras do homem reconstruir a si mesmo. As vicissitudes humanas e urbanas moldam-se mutuamente, e somos facilmente levados a crer que a cidade não tem mais natureza. Assim torna-se mais comum associarmos de maneira óbvia muitas das atividades de nossa espécie como sinônimo de destruição ambiental, sendo o território urbano o maior símbolo de impacto humano na natureza. Quais seriam as vantagens de embasar nossos pensamentos e atitudes segundo uma dicotomia natureza-sociedade? Será que se buscarmos apagar tal polaridade poderíamos ter uma perspectiva mais justa ambientalmente e socialmente?
Talvez a própria ideia de natureza tenha auxiliado o pensamento ocidental a definir o que seria o humano, o civilizado. Esta autodefinição por meio do Outro tem sido um padrão desse raciocínio totalitário – por exemplo a noção de Ocidental em contraposição do Oriental. A necessidade de nos sentirmos diferentes caminhou junto com a necessidade de dominar o Outro. Da mesma maneira que americanos, africanos e asiáticos foram colonizados, também os seus ambientes o foram.
A cidade mantém este mesmo raciocínio com seu Outro, o campo. Moldando esta relação, que sempre foi assimétrica, com mais investimentos na urbe. Hoje, esse campo mais próximo da cidade foi engolido pela mesma, enquanto o mais afastado foi engolido pela agricultura industrial. O quadro abaixo, do suíço Christophe Vorlet, mostra um campo que não existe mais, uma outra releitura do englobamento urbano.
Vorlet possivelmente não imaginou que esta obra, Urban Development de 2004, seria apropriada e ressignificada com outro nome nas redes sociais brasileiras: Vidas Secas. A alusão à obra de Graciliano Ramos é uma ligação óbvia com a paisagem desolada. O cenário ao fundo, de açude dessecado, como uma consequência natural, se transforma lentamente conforme nossos olhos percolam as rachaduras até a parte inferior do quadro: uma área altamente urbanizada. Num loop interminável de causa e consequência nos perguntamos: como as cidades cresceram tanto assim? Será por causa da crise ambiental rural, ou será o crescimento da cidade a causa da devastação no campo? Certamente ambos acontecimentos estão tão - misturados que, como no quadro, fica difícil perceber quando começa um e termina o outro. De repente, talvez, devêssemos tentar superar a polaridade de pensarmos causas e consequências como coisas separadas, e até mesmo antagônicas. Talvez uma nova visão nos ajude a superar a antiga dicotomia natureza-sociedade.
Será que faz sentido interpretar o sucesso da sociedade a partir do fracasso da natureza, ou até mesmo aceitar a destruição da natureza como consequência do progresso da sociedade? Vamos reconsiderar, mesmo que por um momento, a presença da natureza na sociedade. Vamos pensar em como fazemos parte da natureza e como ela faz parte de nós. Ou seja, como um ambiente urbano – por exemplo um rio extremamente poluído – se faz presente em nossa corporalidade, e como nossos atos afetam este ambiente. E se, em vez de pensarmos na degradação, ou destruição, deste rio, considerássemos a perda das características e relações ecológicas que o faziam belo: seu cheiro, seus peixes, suas mudanças naturais. Dessa maneira, teríamos que pensar também nas mudanças das características do rio urbano, principalmente o maior aporte de matéria orgânica, e de poluentes químicos. A vida ainda se mantem neste rio, agora rica em microorganismos patológicos ao homem. Entender como somos afetados por tudo isso permite ver a complexidade e riqueza de nossas interações. Lidar com isso de maneira clara, com o auxílio de um vocabulário mais preciso, faz com que nossas narrativas se tornem mais justas. Pois daí não veríamos um rio morto somente: e sim um rio extremamente poluído por nós mesmos, que afeta nossa saúde pública de uma maneira também injusta e assimétrica.

A maneira como olhamos para o Outro diz muito sobre como queremos ser percebidos. Proponho incluir este Outro em nós mesmos, não somente ao nosso lado, mas dentro do coletivo de tudo isso. As palavras que determinam um ambiente degradado (feio, doente, insustentável) possuem em seus antônimos os meios que podem colaborar para um ambiente não-degradado (bonito, sadio, sustentável). E assim, ao incluir o social no natural, delineamos de maneira mais eficaz nosso senso de justiça ambiental e social.

* O autor é doutorando em História Social no PPGHIS-UFRJ, onde desenvolve pesquisa sobre a relação entre História e Natureza com destaque para o tema dos rios.

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