Alexandre
Araújo Costa
Universidade Estadual do Ceará
Universidade Estadual do Ceará
@filosofiaonface
“Sentimo-nos como se
estivéssemos soltos num cosmos vazio de sentido e desresponsabilizados de uma
ética que possa ser compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as
nossas vidas. Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas
escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que
escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa
abrir a nossa mente para alguma cooperação entre os povos. Não para salvar os
outros, mas para salvar a nós mesmos”. (KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim
do mundo.)
Vejam. A gente na verdade
está diante de uma crise sem precedentes, com a pandemia do novo coronavírus.
Eu queria apenas mostrar aqui rapidinho uma imagem para vocês que coloca em perspectiva
a pandemia do coronavírus em comparação com outras pandemias do passado remoto
e relativamente recente. A gente têm a peste bubônica, a peste negra ou a peste
bubônica, como sendo aquela que dizimou, até onde se sabe, a maior quantidade
de pessoas.
A segunda delas é a
pandemia de varíola, que a pesar de ter se iniciado em 1520, trazida dos europeus
para a América, ela matou cinquenta e seis milhões de pessoas, e essa pandemia,
na verdade, não pode ser considerada como completamente encerrada. Ainda hoje,
membros das comunidades indígenas morrem de varíola muitas vezes nos primeiros
contatos com os europeus. Isso foi algo que aconteceu recentemente, por exemplo
com Yanomami, como bem relatado pelo Davi Kopenawa na sua obra recente “Sobre a
queda do céu”. Covid tá aqui por enquanto. Mas obviamente é lamentável que a
gente tenha certeza que esses números vão se expandir muito nos próximos dias.
E a expansão dos números do corona vírus, que é algo justamente inevitável
agora, eles obviamente são uma tragédia, uma enorme tragédia, a maior tragédia
já desde os nossos tempos. Mas talvez seja por outro lado uma oportunidade
ímpar para, parafraseando Ailton Krenak, escaparmos da cegueira. E nesse
sentido o que que a gente pode dizer da importância de termos essa menção a um
pensador indígena no começo?
Eu diria que parte da
importância disso tem a ver com algo que foi dito no texto chamado “Os
involuntários da pátria” pelo professor Eduardo Viveiros de Castro, quando o
antônimo de indígena é “alienígena”.
No desenvolvimento do
nosso tema hoje, justamente nós vamos adotar o oposto do indígena, o alienígena
como a perspectiva. Nós vamos abordar o tema de hoje nos colocando no lugar de
um. E a historinha que eu vou contar hoje para vocês é justamente a história de
um ET, de um alienígena, que visita a terra daqui a alguns poucos milhões de
anos. E obviamente como toda civilização tecnológica muito provavelmente esse
extraterrestre é curioso e vai fazer prospecções sobre o que aconteceu com
nosso planeta, no passado do nosso planeta. E para isso ele perfura a rocha.
Muito bem. Se um ET fizer
isso daqui a alguns poucos milhões de anos ele vai eventualmente se deparar com
uma camada de sedimentos, uma camada de rocha, que vai representar o que
aconteceu nos dias de hoje, o que está acontecendo hoje, e parcialmente o
passado. Muito provavelmente esse visitante do futuro iria se surpreender com o
que encontrou. Em primeiro lugar ele iria encontrar tecno-fóceis. Da mesma
maneira como hoje nós somos capazes de encontrar a pegada petrificada de um
dinossauro em uma rocha, ou o esqueleto de um peixe, uma marca do esqueleto de
um peixe, numa rocha. Esse extraterrestre seria capaz de encontrar as marcas de
uma placa mãe de um computador, ou de um resto de aparelho de celular.
Seriam técno-fóceis. Ele
iria encontrar também vestígios de Plutônio-239, que é um elemento que
virtualmente não acontece, não ocorre, na natureza. Nem mesmo tem sendo
produzido pela explosão de Super Novas. Plutônio-239 é um resíduo de testes
nucleares e o pico da concentração de Plutônio-239 nos sedimentos que seriam
encontrados por esse extraterrestre marcariam justamente o início do hoje de
testes nucleares em massa. Especialmente no que corresponderia a nossa década
de 1950. Ele também encontraria mudanças nos isótopos de carbono e, claro,
evidências de uma extinção em massa, o que seria a sexta extinção no nosso
planeta.
Essas descobertas desse
extraterrestre iriam basicamente chamar atenção para uma coisa que há milhões
de anos antes, ou seja, hoje no presente, teria existido uma espécie com
civilização tecnológica. Inclusive capaz de produzir artefatos nucleares. Se
ele fosse capaz de investigar mais sobre o que aconteceu ou está acontecendo
agora, esse extraterrestre realmente identificaria que essa espécie dominante
seria um enorme predador. Nós hoje, movimentamos, nas atividades de mineração,
três vezes mais rocha e sedimento do que todos os rios do planeta transportam
juntos. Para se ter ideia, é isso que é necessário para que nós tenhamos, todos
nós, um aparelhinho como esse aqui [smartphone], de 250 gramas, no nosso bolso,
e vários de nós tenham carcaças de uma tonelada de aço em nossas garagens.
Para a gente ter uma
ideia, são necessárias, para nós obtermos os cinquenta, ou mais de cinquenta,
elementos químicos necessários para produzir um único celular, desde o alumínio
da carcaça, o cobre dos condutores, o paladium e o ouro dos circuitos
integrados, o lítio e o cobalto das baterias, nós precisamos minerar 70 kg de
rocha. Para produzir um único aparelhinho desses [smartphone].
É impressionante isso. A
gente teria que parar, e pensar, que nós estamos transportando 70 kg de rocha
quando andamos, quando ficamos por aí usando um aparelho como esse. Da mesma
maneira, imagine que cada automóvel demanda cerca de uma tonelada de aço na sua
produção, e hoje nós temos mais de cinco bilhões de aparelhos celulares no
planeta e temos mais de um bilhão de veículos automotivos. Daí dá para se ter
uma ideia da quantidade de minério, de matéria prima, que é colocada o tempo
todo. E é por isso que eu preciso imaginar que Mariana, Brumadinho, obviamente
são crimes imperdoáveis. A Vale e a Samarco são empresas criminosas, não temos
dúvida disso. Mas é preciso entender que isso não é apenas um acidente, um caso
isolado. A própria demanda, sempre crescente de matéria prima, faz com que
ocorrências raras, que são esses crimes ambientais e crimes contra a
humanidade, eles se tornem cada vez mais prováveis. A necessidade de atender
essa demanda louca tem uma conexão com as tragédias de Mariana e Brumadinho.
É preciso que a gente
entenda também que nós somos enormes predadores de energia e é preciso situar
isso aí quando a gente fala de antropoceno. Somos seres humanos predadores de
energia, especialmente porque o modo de vida que nós construímos, especialmente
a partir da grande aceleração capitalista de meados do século XX, é
extremamente intensivo em energia. Para a gente ter uma ideia, o nosso
organismo, o nosso corpo bilógico, ele demanda cerca de duas mil quilocalorias
diárias para se sustentar, para nós vivermos.
No entanto, a demanda
energética de um estadunidense médio para não apenas obviamente se sustentar,
sustentar o corpo biológico, mas para sustentar aquela façanha de uma casa
grande, a movimentar seu SUV pelas estradas, para manter todos os aparelhos
eletrônicos, eletrodomésticos, que ele possui ligados, para produzir os bens de
consumo que diariamente ele adquire na forma de mercadoria, a demanda
energética associada a isso é muito maior. É mais de duzentas mil quilocalorias
por dia. Ou seja, a gente tá falando algo, duas ordens de magnitude, cem vezes
maior, do que a nossa demanda biológica. Então nós viramos também predadores de
energia, que demandam cada vez mais para o modo de vida que nós adotamos, que
uma proporção gigantesca da geração de energia seja apropriada por nós, dentro
do sistema terra. Essa demanda de energia enlouquecida, que gira essa roda
acelerada de extração, produção, consumo e descarte, ela basicamente veio sendo
atendida, pelos últimos dois séculos, pela queima dos combustíveis fósseis.
Pela queima de carvão, petróleo e gás. O que nos coloca na sinuca de bico da
emergência climática.
Mas claro, também como
predador (aí a gente começa a falar de temas mais próximos, talvez, do aspecto
da pandemia. A gente vai começar a falar de algo que aproxima mais antropoceno
e pandemia. Aí a gente vai perceber como a pandemia é uma face do antropoceno)
nós somos também consumidores vorazes de carne. Eu queria mostrar para vocês
aqui, uma imagem que mostra o crescimento acelerado do consumo de carne em
escala global. Segundo os dados da FAU,
em 2018 nós tínhamos nada menos que trezentos milhões de toneladas de carne
sendo consumidos. Ou seja, nós estamos falando de uma quadruplicação desse
consumo em cinquenta anos. Não, isso não acompanhou o crescimento populacional,
é importante que a gente lembre isso. O aumento da demanda de energia, o
aumento do consumo de carne e um cem números de outras variáveis, não ocorrem
na proporção direta do crescimento da população humana. Ocorre, na verdade, de
maneira mais acelerada ainda, o que tem uma relação intrínseca, não apenas com
a quantidade de seres humanos, mas, sobretudo, com o modo de vida adotado.
Obviamente nós vamos
entrar em detalhes depois, mas eu queria lembrar que carne não é algo abstrato,
carne na verdade é cadáver, e eu queria lembrar vocês que a ciência
recentemente mostrou muito bem que no mínimo todos os répteis, todas as aves,
todos os mamíferos, somos todos nós, indivíduos com capacidade de nos nossos
cérebros produzir sonhos. Todos esses seres têm a capacidade de sonhar. Nós
somos, portanto, meio trilhão de indivíduos sonhadores. Pelo menos, répteis,
aves e mamíferos. E o que acontece, por tanto, é que para atender essa demanda
enlouquecida de carne, de trezentos milhões de toneladas de carne consumidas
pela humanidade a cada ano, o que acontece é que nós estamos levando a morte
cerca de 70 bilhões de seres sencientes. Cerca de 70 bilhões de sonhadores. 14%
dos seres que sonham nesse planeta são todo ano levados à morte para saciar a
fome de carne do outro. Obviamente a maior parte deles são aves, são galinhas,
mas junta-se também porcos, perus, carneiros, bodes, e obviamente, bovinos,
bois e vacas. Então eu queria que a gente realmente pensasse, obviamente, nessa
perspectiva também. Porque nós não somos senão parte dessa biosfera, nós somos
parte inclusive dessa, que eu costumo chamar de, morfeosfera. Ou seja, uma
esfera dos sonhos. Nós compartilhamos a capacidade de sonhar como todos esses
seres do nosso planeta. Eu diria que é importante que a gente entenda o impacto
que tem a indústria da carne, não apenas na sua perspectiva ambiental,
climática, sanitária, mas também na sua perspectiva ética. É preciso que a
gente traga esse conceito.
Eu queria obviamente
também, nessa nossa abordagem, eu queria introduzir uma outra informação
relevante que é o conceito de limites planetários. E esse conceito tem tudo a
ver com antropoceno, porque o antropoceno na medida em que ele representa a
dominância da humanidade organizada sob o modo de produção de mercadoria sobre
o modo de produção capitalista, sobre os ciclos e fluxos de matéria e energia
no sistema terra, o antropoceno representa uma violação dos chamados limites
seguros da humanidade. E é impressionante é o seguinte, que esse deveria ser um
conceito muito básico, muito primário, uma vez que os adultos costumam falar
sempre que as crianças tem que ter limites, as pessoas sabem o que é um limite
de velocidade e as pessoas sabem, principalmente, o que é o limite do cartão de
crédito e o limite do cheque especial, e aí é uma vergonha que muitas vezes a
gente tenha que se referir a uma abstração que é dinheiro, para que as pessoas
entendam um conceito como o de limites, como o aplicado a coisas muito mais
relevantes, muito mais concretas, palpáveis, materiais, que são justamente os
limites planetários.
Esses limites são nove. O
clima, a biodiversidade, o uso da terra, o uso de água doce, os surtos
biogeoquímicos (com destaques para os surtos de nitrogênio e fósforo), o PH dos
oceanos, a concentração atmosférica de aerossóis, e o ozônio estratosféricos, e
também, claro, a presença de novas entidades. Ou seja, os poluentes do
ambiente, o que vai do lixo radioativo até o plástico. A gente não vai poder
falar de todos eles, mas eu queria, obviamente lembrar, que alguns desses
limites estão muito concatenados com a pandemia. E que limites seriam esses?
Um deles é justamente a
degradação ambiental. Eu estou compartilhando agora um dado da FAU que mostra
como é que o uso da terra foi radicalmente modificado para atender a nossa
demanda alimentar, ao nosso tipo de dieta, uma dieta que é basicamente muito
intensiva em carne. Ou seja, no holocausto de dezena de bilhões de seres
sencientes todo ano. Essa degradação ambiental, ela vem do fato de que 29% da
superfície do planeta é de continentes, mas apenas 71% é habitável, ou
agricultável. O que acontece nesses 71% é que nós que, obviamente,
inicialmente, eram florestas ou outros biomas, outras matas, hoje nós temos
apenas isso reduzido a 37% de florestas, 39 milhões de quilômetros quadrados, e
11% de outros biomas arbustivos, como nosso cerrado, a caatinga, a savana
africana e muitos outros. Percebam que
hoje, 50% do que seria essa terra que seria habitável, é dominada pela
agropecuária. 1% é infraestrutura, área urbanizada, enfim. Então o grosso da
degradação ambiental está relacionado com a agropecuária. Mas aí é que vem o
dado mais importante. Desses 51 milhões de quilômetros quadrados destinados a
agropecuária, apenas 26%, ou seja, 11 milhões de quilômetros quadrados, são
destinados a produção dos vegetais que alimentam os seres humanos. Esses 23%
respondem por 82% das calorias que consumimos e 63% das proteínas que
consumimos.
Os outros 77% da área, ou
quarenta milhões de quilômetros quadrados, o que é mais do que as florestas do
planeta estão dedicados a produção de carne. Ou seja, a produção de cadáveres.
Esses 77% da cobertura da terra habitável agricultável, é dividida entre pasto
e culturas que são exclusivas, ou majoritariamente, destinadas a alimentação de
animais confinados. E aí eu me refiro, por exemplo, a soja brasileira. Dos
terços da soja brasileira, ou três quartos da soja brasileira, não têm
finalidade a alimentação humana. É ração. O gosto disso vai virar ração de
porcos na China. Boa parte da produção de grãos do planeta é para alimentar
aves e suínos e bovinos confinados. O que acontece é que 77% dessa área supre
apenas 18% das calorias humanas, das calorias usadas por seres humanos. E
apenas 37% das proteínas. O que mostra, obviamente, que uma dieta a base de
vegetais seria uma alternativa óbvia para reduzir a pressão sobre os ambientes,
sobre os biomas, conter o desmatamento, conter a degradação ambiental. E
obviamente permitir o uso de áreas para outra finalidade, como reflorestamento
e até mesmo a produção de matéria para bioenergia, o que é fundamental para que
a gente possa efetivamente inclusive tratar outras questões fundamentais e
urgentes como a crise climática.
Percebam então que esse
primeiro aspecto que toquei, da mudança do uso do solo, é uma parte essencial
do problema. Nós estamos cada vez mais avançando sobre ambientes silvestres.
Estamos cada vez mais colocando pressão e fazendo contato com espécies
silvestres, cada espécie silvestre tem o seu repositório viral, cada espécie
silvestre tem uma carga viral própria. Obviamente, em condições pré
antropoceno, as chances de um vírus, ou uma mutação desse vírus, eventualmente
sair de um organismo de um animal silvestre e ir para um ser humano era
eventualmente nula, era muito pequena. Hoje em dia nós temos uma outra
situação, essa invasão humana nos ambientes silvestres coloca-nos cada vez mais
em contato com essas cargas virais. Então a chance de uma contaminação é cada
vez maior. Esse é o primeiro fator que eu queria que nós abordássemos.
Degradação ambiental tem tudo a ver com pandemia.
Eu queria mostrar um
outro slide aqui para vocês agora, que está relacionado com o fato anterior,
com a degradação ambiental e a demanda por carne, mas é num outro aspecto. É no
terreno da domesticação da biomassa terrestre. Pra gente ter uma ideia, e esses
gráficos aí são realmente chocantes, cerca de 96% da biomassa de mamíferos do
planeta é domesticada. 60% disso é gado, 36% humano, e apenas 4% da biomassa de
mamíferos permanece silvestre. Escutem o que eu estou lhes dizendo nós temos 15
vezes mais massa em animais de criação do que em animais silvestres. Nós temos
15 vezes mais massa em suínos, bovinos, caprinos, do que em tudo o que você
possa imaginar de mamífero silvestre. Da onça pintada ao tamanduá, da capivara
ao mico-leão, do orangotango ao elefante, da girafa ao rinoceronte, do tigre ao
gnu ao alce. 15 vezes mais.
E um outro dado também
estarrecedor é o que tem ao lado, é o fato de que 70% da biomassa de aves está
em granjas. De cada 100 quilogramas de ave no planeta 70 quilogramas estão em
granjas. 30 é todo o resto. Todo o resto que canta, saltita livremente, seja em
ambientes urbanizados, seja em ambientes silvestres. Isso obviamente é uma
calamidade, não apenas ambiental, mas é uma calamidade sanitária.
Se vocês perceberem, se a
memória de vocês não falha, boa parte das últimas grandes pandemias tem uma
relação direta com a agropecuária, particularmente com o confinamento animal.
Gripe aviária, gripe suína, esses são os nomes populares. Nós temos hoje esse
quadro em que dois aspectos da crise ecológica. Um deles é degradação de
habitats que coloca em contato, cada vez mais, espécies silvestres e espécies
domesticadas, e o próprio confinamento animal, são duas bombas relógio em termo
do aumento da probabilidade, da chance, de um vírus típico de uma espécie
migrar para outra, seja diretamente para humanos, seja para uma espécie de
animais que servem de alimento a humanos.
É preciso entender que o
antropoceno, ou seja, essa dominância da espécie humana, organizada sob o
capitalismo, em torno do sistema terra, é estreitamente vinculado a
globalização. Então existe um enorme fluxo de DNA. Um enorme fluxo viral
associado às atividades humanas. Percebam, por exemplo, não apenas as viagens
internacionais de pessoas. Hoje isso é obviamente uma condição fundamental para
que o coronavírus tenha virado pandêmico, nós temos todas as cidades do planeta
conectadas em questão de horas. Então rapidamente uma contaminação pode se
espalhar, mas não é só isso. É preciso que a gente entenda que há também outros
fatores associados.
Um deles é o transporte
de carga e a introdução de espécies invasoras. Por exemplo, água de lastro em
navio. É a água que as companhias de navegação utilizam para compensar o peso
dos navios quando eles estão sem cargas. Quando o navio descarrega ele fica muito
leve, tende a flutuar demais e aí essa ausência de carga é compensada colocando
água em determinados compartimentos no caso do navio.
Mas essa água é do mar e
ela traz tudo dentro. Por exemplo, o coral-sol que invadiu os mares das
Américas do Caribe, a partir justamente desse tipo de transporte. Então nós
temos justamente, constantemente trazendo através das cargas que circulam
planeta à fora, vírus.
Outro aspecto importante,
ou outros dois aspectos importantes têm a ver mais de maneira indireta através
da questão da mudança climática. São eles primeiro o derretimento de geleiras,
do permafrost, etc. Que expõem a matéria orgânica que estava congelada há
dezenas, ou centenas, de milhares de anos, e eventualmente a exposição dessa
matéria orgânica à decomposição pode ressuscitar vírus que estavam adormecidos
há muito tempo. Então essa é uma outra fonte de doença relevante.
Também ligado à mudança
climática tem a questão da mudança na faixa de habitat de vetores de doenças.
No caso já bastante bem reportado sobre isso, é o avanço da dengue rumo às
altitudes mais altas. A dengue, muito exclusiva dos trópicos em geral, ela já
avança sobre latitudes mais altas porque o aquecimento global permite a
reprodução e a manutenção do Aedes aegypti nessas condições (lembrando que o
Aedes aegypti também é um caso de espécie invasora).
E por fim, a própria
mudança dos habitats, devido ao aquecimento global, a mudança climática, força
a migração de espécies. Então espécies que não tinham contato umas com as
outras passam a ter contato. Isso permite uma troca viral entre essas espécies
cada vez mais acelerada. Antes os principais transportadores de vírus eram,
talvez, as aves migratórias, hoje não. Nós, de longe, substituímos as aves
migratórias como vetores de transmissão à longas distâncias de material viral.
Então percebam que tudo
isso está concatenado. O que eu quero dizer, no entanto, é que o coronavírus
serve, nesse aspecto, como algo muito ilustrativo, mas ele está longe de ser “o
patógeno perfeito” ou “a tempestade perfeita”. O que seria uma tempestade
perfeita? Seria algo muito mais trágico, muito mais grave. Seria um vírus tão
contagioso quanto o novo coronavírus com também um tempo longo de incubação, um
tempo de contágio assintomático longo, mas que fosse mais letal. E isso,
principalmente, isso é perfeitamente possível acontecer. Isso seria muito mais
grave ainda numa situação de caos climático generalizado.
Eu quero lembrar aqui um
exemplo, o exemplo, por exemplo, que não é de nenhum país do terceiro mundo, nem
um país do Sul global, eu to falando dos Estados Unidos. Vou falar aqui é da
Louisiana, da região de Nova Orleans. Quem lembra do catrina? Que, salvo
engano, em 2004 atingiu com uma fúria imensa o Sul dos Estados Unidos, em
particular Louisiana e a região de Nova Orleans. A gente lembra, inclusive, que
aquela região ficou desassistida durante muitos dias. Uma região de maioria
negra, de maioria pobre. Imagine, e lembre, que hoje os Estados Unidos estão
sendo atingidos com força total pela pandemia. E obviamente os olhos se voltam
mais para Nova Iorque, por conta do número de pessoas. Mas o local que hoje
concentra a maior proporção de doentes e mortos não é Nova Iorque é a região
metropolitana em torno de Nova Orleans. Imagine isso numa situação concorrente
casado ao mesmo tempo com um grande furacão, ou uma grande catástrofe
climática. Imagine a situação hoje dos refugiados, sejam refugiados ambientais,
sejam refugiados de guerra. Como é que você vai chegar e dizer para evitar
aglomeração nesse caso? Imagine o caos climático multiplicando por dez, por
cem, por mil, esse quadro.
Eu quero que vocês
lembrem, por exemplo, que Bangladesh (é um país que fica ali no subcontinente
indiano, no Sul da Ásia, pertinho ali da Índia), é um país que tem a área do
nosso Ceará aqui, aproximadamente. Tem 154 milhões de pessoas lá, 100 milhões
dessas pessoas moram a menos de 10 metros do nível do mar. Uma elevação no
nível do mar de escala de poucos metros produzirá dezenas de milhões de
refugiados climáticos. Como é que você combate uma pandemia num quadro desse?
Porque, assim, para mim
não resta dúvida: nós só temos uma alternativa que é receber de braços abertos
os irmãos e irmãs de Bangladesh, ou de qualquer outro local afligido por uma
catástrofe climática. Então eu disse para vocês, né, usando as palavras do Ailton
Krenak, que fala de oportunidade de escapar à cegueira. A Covid-19 não é nem de
perto uma catástrofe do tamanho do que pode se abater sobre nós, mantida essa
nossa lógica irresponsável de permanecer sentado em cima dessa bomba relógio de
pandemia e caos climático. E acho que esse é o ponto, talvez, nós estamos
sentados numa bomba relógio. De muito mais alcance, muito mais profunda, de
muito maior escala, e muito mais irreversível, do que aquilo que a gente
vislumbra hoje.
Lembrando que nesse caso,
nós já temos falado de que as coisas não vão voltar ao que eram antes. Que a
gente vai precisar reconstruir a economia, nós vamos precisar mudar o que está
sendo feito. Nós não temos ideia de quão irreversível é algo mais profundo,
como eu disse, uma pandemia com um vírus, desculpe a redundância, mas um vírus
mais virulento, numa condição agravada de aquecimento global com o planeta
dois, três graus mais quente.
Eu queria então lembrar
da célebre frase do Walter Benjamin, em que ele dizia que, se referindo ao
capitalismo, muitas vezes as pessoas que pensam uma sociedade alternativa ao
capitalismo não pensam que na verdade o capitalismo tem tudo a ver com esse,
essa aceleração, com essa dominância sobre a natureza, sobre a dominância
irresponsável. Então diferente de muitos pensadores que imaginam alternativas
ao capitalismo, Walter Benjamin falava de freio de emergência, ou uma frase que
eu gosto muito, de que “é preciso cortar o pavio que queima antes que a faísca
atinja a dinamite”.
Eu vou fazer uma última tentativa
aqui e aí vocês me dizem se funciona ou não. Eu vou tentar colocar um slide aí.
Mas é um slide que eu posso descrever em palavras também. Porque é um slide que
diz respeito a famosa curva que a gente quer achatar. Acho que todo mundo já
testemunhou, todo mundo já viu, a famosa curva de contágio do novo coronavírus
em que a ideia é que a gente tem um crescimento exponencial, e se esse
crescimento exponencial for muito acelerado, muitas pessoas se contagiam ao
mesmo tempo e a gente ultrapassa muitas vezes a capacidade do sistema de saúde
em socorrer essas pessoas. Por tanto é fundamental achatar a curva.
Eu quero dizer para vocês
que nós já ultrapassamos esse limite em relação a outra coisa. Que são
justamente o limite do uso de terra, água, possibilidade de emissões de
carbono, etc. Nós passamos da capacidade de carga do sistema terrestre, então
nós entramos justamente na situação que é o paralelo ao SUS entrar em colapso,
de não ter leito para atender pessoas em pandemia. Nós estamos nessa situação em
relação ao sistema terra. Então mais do que nunca é necessário supressão para
achatar essa outra curva. Porque a irreversibilidade, e a gravidade do
processo, é muitas vezes maior do que a da pandemia.
E aí eu queria fazer mais
um paralelo. Esse paralelo tem a ver com a supressão que a gente tá fazendo
aqui como a principal e a única alternativa para conter, para limitar, o
alcance do contágio pelo coronavírus, para desacelerar a crise pandêmica, que é
supressão. Supressão significa, obviamente, que muita gente fica em casa, mas
não só isso, que muitas atividades econômicas deixam de ser realizadas. E eu
queria que a gente pensasse muito seriamente nisso. O que é que de fato é
essencial?
Eu acredito que a
supressão que a gente está experimentando mostra que uma quantidade enorme da
produção, do trabalho, que é realizado é desnecessário, é perdulário. Expõe a
nu uma, algo que eu tenho dito há muito tempo, nós temos muito trabalho morto e
que, portanto, a altíssima produtividade do trabalho permitiria que nós
tivéssemos jornadas de trabalho muito mais curtas do que nós temos hoje, para
produzir aquilo que de fato é necessário. E aí, necessário incluo a produção de
conhecimento, a produção artística, eu incluo tudo isso. Não apenas alimento,
não apenas vestimento, não apenas bens essenciais materiais, mas eu falo também
de bens essenciais imateriais.
Percebam que a gente
poderia estar falando, e eu não sei o que é que aconteceu com o movimento
sindical porque quando eu era jovem o pessoal falava de jornada de trabalho de
40h, eu não sei cadê o movimento sindical que não fala em jornada de trabalho
de 20h, de 15h, em final de semana de três dias. Em dois períodos de férias de
45 dias por ano. Isso é absolutamente viável. Dada a produção, a produtividade
de trabalho hoje. E mais, isso é totalmente viável, especialmente se a gente
for capaz de mudar a lógica da produção de alimentos, de uma dieta baseada na
carnificina para uma dieta baseada em vegetais, cobrindo muito menos área e
possibilitando a restauração, a recuperação, do metabolismo com a natureza.
E aí eu queria usar aqui
também uma citação de um pensador que eu penso muito necessário para entender
os dias de hoje que é o Bruno Latour. Num artigo que ele publicou agora, nesse
último domingo, ele diz algo mais ou menos assim “Ficou provado que é possível
em questão de semanas suspender em todo o mundo, e ao mesmo tempo, um sistema
econômico que até agora nos diziam ser impossível desacelerar ou redirecionar”.
Eu acho que essa lição é fundamental que a gente tire de tudo isso. Nós temos
uma enorme economia voltada no aumento eterno do PIB, baseada na lógica de
crescimento infinito, e é uma lógica tão absurda que se nós pensarmos bem, um
revólver e os projéteis desse revólver, algo cujo único objetivo é matar, desde
que isso seja produzido e comercializado, isso entra na conta do PIB. Mas uma
fruta que você colher no quintal, ou se você tiver uma pequena hortinha, mesmo
dentro de um apartamento, e colher uma pimenta, ela não entra no PIB. Então tem
alguma coisa muito errada nisso. É uma coisa muito errada em que itens
supérfluos, itens de luxo, tudo que é perdulário, entra na contabilidade do PIB
e um rio limpo não. Na verdade o rio vai entrar no PIB quando acontecer o
assassinato do rio, como o rio doce, com o crime da Samarco.
E dentro do PIB poderia
entrar, por exemplo, uma descontaminação do rio. Vejam que coisa mais absurda.
O ato de exterminar um rio e suas formas de vida e “recuperá-lo” ou aproximá-lo
do que ele era antes, ou seja, algo que é basicamente voltado para um estado
parecido ao original só que mais empobrecido, isso entra duas vezes no PIB.
Deixar o rio como tá não. É uma lógica econômica absurdamente irracional. E aí
eu vou fazer aqui as mesmas perguntas que o Latour fez ao final desse artigo,
traduzido pela minha querida Déborah Danowski lá da PUC do Rio. As perguntas
são, primeira, “Quais as atividades agora supensas que você gostaria que não
fossem retomadas?”. Segunda pergunta, “Descreva porque essa atividade lhe
parece prejudicial, supérflua, perigosa, sem sentido, e de que forma o seu
desaparecimento, suspensão, substituição, tornaria outras atividades que você
prefere, mais fáceis”. Terceira pergunta, “Que medidas você sugere para
facilitar a transição para outras atividades daqueles trabalhadores,
empregados, agentes, empresários, que não poderão mais continuar nas atividades
que você está suprimindo?”. Quarta, “Quais as atividades agora suspensas que
você gostaria que fossem ampliadas, retomadas, ou mesmo criadas a partir do
zero?”. Quinta, “Descreva porque essa atividade lhe parece positiva e como ela
torna outras atividades que você prefere mais fáceis, harmoniosas, pertinentes,
etc?”. E a sexta e última, “Que medidas sugere para ajudar os trabalhadores,
empregados, etc, para retomar, desenvolver, criar, essas novas atividades?”.
São as perguntas que o
Latour fez, e acho que é o dever de casa coletivo. É o dever de todo mundo
trabalhar para respondê-las, não apenas em teoria, respondê-las em prática.
Porque, com efeito, nós entramos em algo que vários autores chamam de ruptura
metabólica e Latour chama de mutação ecológica, tem vários termos disso, mas
que basicamente tem a ver com o conceito de antropoceno. Nova época geológica
em que a humanidade, obviamente não a humanidade por igual, se tornou força
dominante sobre os fluxos geológicos.
É importante a gente
obviamente fazer uma sinalização nessa questão da desigualdade, para a gente
ter um pensar que o termo aí se refere a uma humanidade homogênea, não. Para a
gente ter uma ideia um integrante da camada dos dez por cento mais ricos dos
Estados Unidos emite nada menos do que quinhentas vezes mais CO2 na atmosfera
do que um habitante pobre, do habitante de um país africano pobre como Chade,
República Centro Africana, Ruanda, e outros. Então, veja, não é por igual.
O antropoceno levou
justamente à ultrapassagem da capacidade da terra. Eu queria que a gente
pensasse que não há alternativa para nós se nós pensarmos como o alienígena. A
descrição da pegada humana nas rochas é uma descrição feita por um alienígena,
que nos vê de fora. Nós não podemos pensar como o alienígena, nós precisamos
pensar como o indígena. Recuperando, justamente, a oposição feita por Eduardo
Ribeiro de Castro. Ou seja, nós precisamos pensar em transformar a história a partir
de dentro. O que requer outro pensamento, outra forma de ver o mundo. E talvez
nesse sentido olhar de fora seja possível e necessário apenas da maneira como
Karl Sagan, e eu queria encerrar com isso. Como Karl Sagan nos brindou ao
chamar o posicionamento da câmara espacial para a terra e capturar a terra num
momento de quase fragilidade. Como um pálido ponto azul.
E eu queria fechar com as
palavras de Sagan:
“Olhem de novo esse
ponto. É aqui a nossa casa. Somos nós. Nele, todos a quem ama, todos a quem
conhece, qualquer um sobre quem você já ouviu falar. Cada ser humano que já
existiu viveu a sua vida nele. O conjunto da nossa alegria, do nosso
sofrimento, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas. Cada
caçador e coletor, cada herói e covarde. Cada criador e destruidor da
civilização. Cada rei e camponês. Cada jovem casal de namorados. Cada mãe e
pai. Cada criança cheia de esperança. Inventor e explorador. Cada professor de
ética, cada político corrupto. Cada super astro, cada líder supremo. Cada santo
e pecador, na história da nossa espécie viveu ali. Em um grão de pó suspenso
num raio de sol. Já foi dito que a astronomia é uma experiência de humildade e
criadora de caráter. Não há, talvez, melhor demonstração da tola presunção
humanado que esta imagem distante do nosso minúsculo mundo. Para mim destaca a
nossa responsabilidade de sermos mais amáveis, uns com os outros, e para
preservarmos e protegermos o pálido ponto azul. Único lar que conhecemos até
hoje.”
E é precisamente fazendo
a negação do alienígena, afirmando o indígena, colocando o conhecimento e o
pensamento tradicional, personalizado por Ailton Krenak, com o pensamento
científico trazido por Karl Sagan que eu queria encerrar.
Live realizada em 01 de abril de 2020 no canal @filosofiaonface
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