por Aldrin Figueiredo
Acabei de assistir, nesse carnaval chocho, o último capítulo da série brasileira para a Netflix Cidade Invisível. Merece outra temporada e espero que incentive os produtores e diretores nessa trilha do fantástico com gosto local. O personagem central da trama é um fiscal ambiental, interpretado pelo ator Marco Pigossi, que perde a esposa (Julia Konrad) e acaba se envolvendo em uma batalha entre a realidade e um mundo invisível habitado por seres fantásticos, todos muito conhecidos do folclore brasileiro. Está mais, no entanto, para X-Men do que para Sitio do Pica-Pau Amarelo, com todo o suspense que se tem direito.
O nome da série Cidade Invisível se refere à cidade dos encantados, uma espécie outra dimensão da realidade, que pode ser adentrada pelos seres encantados ou pelo pajé (que tem esse dom xamanístico de transitar entre os mundos). Na série o tema é tratado de modo muito criativo, embora pudesse aprofundar os efeitos especiais. Quem já teve oportunidade de conversar com um pajé ou curador, sabe que na terra do fundo, os seres inanimados podem ganhar vida, uma cadeira pode ganhar a forma de onça, por exemplo. Ou, como me disse uma vez dona Zenaide, pajé do Cucuí, em Alenquer: lá é igual aqui, só que diferente. (algo Guimarães Rosa). É o duplo, o espelho, outro lado. Como vemos, o assunto já foi tema de Platão, de Freud, de Lewis Caroll, de Dalcídio Jurandir.
Acho que a maioria das pessoas vai estranhar, por exemplo, a Cuca, que na série não tem nada que ver com a jacaroa de Monteiro Lobato. A cuca Netflix (muito bem vivida por Alessandra Negrini) é muito mais próxima à Matinta-Pereira, bruxa amazônica, que tem entre seus fados a capacidade de voar, na forma de um papagaio. Na série, a Cuca vira borboleta, algo absolutamente comum no imaginário amazônico colonial, inclusive descrito com toques realísticos no Livro da Visitação do Santo Ofício ao Estado do Grão-Pará, em 1764, com detalhes sobre os grandes olhos da mariposa. Seu poder é o de penetrar nos sonhos, durante a vigília, e visitar a memória e o inconsciente das pessoas.
Outro personagem interessante é o do Saci (Wesley Guimarães), cuja narrativa está entre o drama da escravidão, quando perde a perna depois de um castigo, e a esperteza do menino que some no redemoinho. O saci, descrito no século XIX era como o pesadelo, preto retinto, de capuz vermelho, que aparecia no sonho. Pádua Carvalho anotou em Belém uma detalhada narrativa dessa história em 1886, que fez com que isso chegasse a Paris, pelas mãos de Santa-Anna Nery e do príncipe Roland Bonaparte.
Há também o Tutu, apelido do catitu. O mito do homem que vira porco, algo próximo mas diferente do lobisomem, labisônio, homem-cachorro, homem-lobo. O Tutu (Jimmy London) é o porco que mete medo nas correrias e que faz o som da mandíbula das queixadas. Eu mesmo, encontrei, na pesquisa do mestrado, uma história de um desses, em Belém, que fazia visagem no largo da Sé. Na série se aproxima mais do Tutu Marambá, que alguns consideram de origem africana. Tutu viria de Quitutu, que em quibundo significa justamente ‘comer’. É de onde vem a palavra quitute ou, por esse lado, o tutu de feijão dos mineiros, por exemplo. Assim também a Iara, que nem precisa falar nada, mas que na série é sereia e tem o poder de hipnotizar pelo olhar e pelo canto, dentro e fora da água. É preta (a linda Jéssica Córes), meio Marabô ou Oguntê, do repertório afro-brasileiro, pois diferente da mãe d´água cabocla, essa sai da água tranquilamente, veste roupa e sobe ladeira.
Os grandes entes da série são o boto (Victor Sparapane) e o curupira (Fábio Lago, estupendo). O boto não vou falar porque é spoiler demais. Tem que ver. O curupira faz todo o sentido, pois é de fato o grande protetor da mata. Domina o fogo no cabelo e mete medo até no Jurupari. A Netflix que lute! Teria que ler Stradelli e Nimuendaju, e conversar com a dona Cruzinha no Pacoval, sobre o Jurupari Taraca. E, por fim, o trunfo da série sem dúvida está no modo de contar do diretor Carlos Saldanha. O cineasta e animador brasileiro é mais conhecido por seu trabalho no exterior, inclusive foi indicado duas vezes ao Oscar e é responsável pelas animações A Era do Gelo, Rio e O Touro Ferdinando. Vale a pena assistir a série principalmente para quem nunca ouviu nada disso, nem leu ou não sabe de nada sobre o assunto, pois terá um olhar contemporâneo dos mitos indígenas, que fizeram compor o chamado folclore brasileiro, para lembrar Câmara Cascudo, cujo livro é folheado na trama. É o local de modo universal, e ao invés de pitoresco, o existencial.
Aldrin Figueiredo é professor na Universidade Federal do Pará e autor da obra 'A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileiras na Amazônia: 1870-1950'.
Nenhum comentário:
Postar um comentário