sexta-feira, 3 de abril de 2020

Carlos Magno no igarapé do Cucuí

Aldrin Moura de Figueiredo* 

Hoje, 2 de abril, é o aniversário de Carlos Magno. Licença da quarentena, mas tem reza, palma e flauta para D. Carlos Magno no igarapé do Cucuí em Alenquer. Os antigos pajés e os antigos vòduncì (mejitó, doté e doné) do Pará e do Maranhão lhe devem grande afeição. Carlos Magno foi o primeiro Imperador do Sacro Império Romano de 800 até sua morte, além de Rei dos Lombardos a partir de 774 e Rei dos Francos começando em 768. 





A denominação dinastia Carolíngia, que pelos sete séculos seguintes dominou a Europa, no que veio a ser posteriormente chamado Sacro Império Romano-Germânico deriva do seu nome em latim "Carolus". Por meio das suas conquistas no estrangeiro e de suas reformas internas, Carlos Magno ajudou a definir a Europa Ocidental e a Idade Média na Europa. Tudo isto vasta glória, legenda e parlenda. Mas, como bem disse Câmara Cascudo, foram suas histórias e seus mitos que conquistaram o interior do Brasil no século XIX. 


O livro Carlos Magno e os doze pares de França chegou ao sertão e à floresta, em lombo de jumento e em canoa. E com essas histórias vieram seus heróis, muitos dos quais saídos da Canção de Rolando, ou de La chanson de Roland, como querem os franceses. Todo mundo deveria ler um dia. É um poema épico composto no século XI em francês antigo (com muitas adaptações), sendo a mais antiga das canções de gesta escritas em uma língua românica. Teve enorme influência na Idade Média, inspirando muitas outras obras sobre o tema (a chamada "Matéria de França") por toda a Europa. Como outras canções do gênero, à época, era recitado por jograis nas cortes e nas cidades. Suas passagens estão desde as cavalarias brasileiras aos dramas de circo. O circo Transguará, nos anos 70, em Alenquer, apresentava o drama da princesa Floripes, adaptado das histórias de Roldão.




É tão lindo isso em forma popular. O poema narra o fim heroico do conde Rolando (lembra Roldão Junior), sobrinho de Carlos Magno, que padece junto ao seus homens na batalha de Roncesvales, travada no desfiladeiro do mesmo nome contra os sarracenos. A base histórica do poema é uma batalha real, ocorrida em 15 de Agosto de 778 entre a retaguarda do exército de Carlos Magno, sob o comando de Rolando, um dos Doze Pares de França, que abandonava a Península Ibérica, e um grupo de montanheses bascos, que a chacinou. Embora tenha por base uma batalha cuja ocorrência é corroborada historicamente, o relato apresentado no poema não é muito fidedigno (ainda bem): os autores do massacre passaram de bascos a muçulmanos, e tanto essa alteração como o tom geral do poema justifica-se pelo contexto das Cruzadas e da Reconquista cristã da Península, que se presenciou no século XI. Justamente essa imensa história das cruzadas é o campo mítico onde se situam as entidades dessas fábulas no panteão religioso do Tambor de Mina e da Pajelança Cabocla da Amazônia. No passado, os nomes eram praticamente os mesmos canções de cavalaria - Carlos Magno, Rolando (quase sempre chamado de Roldão), sobrinho de Carlos Magno, Ganelão (Ganelon), o traidor, o Rei Marsílio (Marsile), rei mouro de Saragoça, o famoso Oliveiros (Olivier), o amigo íntimo e prudente de Rolando (esse calvaga ainda pelos campos de Alenquer), Turpino (Turpin), Baligante (Baligant), Emir de Babilônia, a tal Bramimunda, Rainha de Saragoça, capturada por Carlos Magno e convertida ao Cristianismo, Pinabel, que combate na ordália por Ganelão, e Thierry, que combate por Carlos Magno e Rolando no ordálio final. Aqui temos o querido Fernando Maués, que é muito sabido nesses assuntos de romances das cavalarias. Longa história, mas, hoje, ao entrar em sessões de cura ou festas de terreiro, essas figuras volta e meia aparecem agregadas às famílias de encantados, que virão com essa mesma legenda de Carlos Magno e seus inimigos Mouros. 



Os reis de Europa, agora chamados Senhores de Toalha, vestidos em belo richelieu, como D. Luís, Rei de França, D. Sebastião, D. Manuel (o venturoso), ou a Rainha Barba Soeira, de um lado, e de outro a Família de Turquia, de gente moura, descendentes do Rei da Turquia, ou Ferrabrás de Alexandria, como aparece nas canções de gesta. Muitas dessas histórias foram analisadas de modo profundo por Mundicarmo Ferretti, Anaíza Vergolino e mais recentemente por Taissa Tavernard de Luca. Eu, aqui e ali, dei encontro com essa gente no meu trabalho de mestrado. Se interesse tiverem é só perguntar pra professora Taíssa. Difícil no Pará alguém que não tenha ouvido falar na bela turca mais famosa de toda essa história - D. Mariana, a arara cantadeira da pajelança, chefa da esquadra da Marinha Brasileira e princesa de Istambul. É uma bela história das cruzadas contata de outro modo. Na verdade não sei, só sei que foi assim. Boa noite.

* Aldrin é professor do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia na Universidade Federal do Pará. Dentre outros títulos, publicou o livro 'A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileiras na Amazônia: 1870-1950'. 

Um comentário:

Unknown disse...

Meus parabéns pelo texto! Se tiveres mais materiais dessa natureza, peço por gentileza que me dê licença de entrar em contato!

pedrofeliperp@gmail.com

Cordialmente,

Pedro Felipe.