Este artigo é a versão integral e o ponto de partida do texto "O amargo avanço da doçura" de José Augusto Pádua, publicado na edição de Julho de 2013 da Revista de História da Biblioteca Nacional que foi editado devido as limitações de espaço da publicação impressa da RBHN.
José Augusto Pádua é doutor em ciência política pelo Iuperj e professor adjunto do Instituto de História - IFCS/UFRJ. É autor dos livros Um sopro de destruição, O que é ecologia, Ecologia e política no Brasil e de vários artigos em livros, periódicos científicos, revistas e jornais publicados nacional e internacionalmente. É pioneiro nos estudos em história ambiental no Brasil e atualmente um dos mais importantes historiadores nessa área de pesquisa.
Agradecemos ao professor José Augusto Pádua e à Revista de História da Biblioteca Nacional pela autorização da publicação do texto integral neste blog. As imagens que ilustram o texto foram escolhidas e colocadas por nós.
O IMPÉRIO ECOLÓGICO DO AÇÚCAR
Foi por volta do ano 327 a. C., com o retorno à Grécia de participantes das campanhas de Alexandre Magno na Índia, que começaram a chegar na Europa algumas notícias sobre a existência no Oriente, nas palavras do historiador português Henrique Parreira, de “uma espécie de bambu que produzia mel sem intervenção das abelhas, servindo também para preparar uma bebida inebriante”. Essas notícias indicavam um momento importante de um dos movimentos mais fascinantes e fundamentais da história da humanidade: a descoberta e disseminação, entre os diferentes povos e regiões, da grande diversidade de plantas e animais existentes no planeta. A cana de açúcar, até então desconhecida dos europeus, foi descrita inicialmente a partir de elementos do mundo natural que eles já conheciam. Ela se parecia fisicamente com os bambus, além de produzir um líquido doce comparável ao mel. Essa foi uma prática muito comum em diferentes situações históricas: procurar entender a biodiversidade exótica a partir da biodiversidade familiar.
No caso das plantas, é possível notar a dimensão histórica global do
processo de domesticação e circulação das espécies. A partir das profundas transformações geológicas e biológicas pelas quais a Terra passou, através da sua história de 4,5 bilhões de anos, os seres vivos vieram evoluindo e se diversificando nas diferentes regiões e espaços ecológicos do planeta. Algumas espécies se espalharam por vários continentes. Outras são endêmicas, existindo apenas em espaços bem delimitados. Das cerca de 400 mil espécies existentes de plantas, as sociedades humanas domesticaram algumas centenas, em um processo que começou por volta de 11. 000 anos atrás. Mas apenas 15 plantas são responsáveis por mais de 80% da atual produção agrícola: trigo, milho, arroz, cevada, sorgo, soja, batata, mandioca, feijão, batata doce, banana, beterraba, café, chá e cana de açúcar. Ao longo dos milênios, o uso social de muitas dessas plantas fundamentais permaneceu localizado em regiões específicas, como o milho na Mesoamérica e o arroz na China. Mas os inúmeros movimentos de trocas biológicas e culturais entre diferentes povos e lugares, assim como o processo muito mais amplo de globalização observado dos últimos séculos, fizeram com elas se misturassem e seu uso fosse reinventado de diferentes formas.
Tão importante quanto a disseminação das plantas em si, através da aclimatação e do cultivo, é a construção e circulação dos saberes sobre os seus usos econômicos e sociais. Um processo que ocorre na longa duração, em grande parte por agentes anônimos. É através da experiência e da reflexão que se consolidam os usos e surgem as inovações, algumas delas cruciais. As primeiras notícias sobre a utilização da cana no Ocidente, por exemplo, não mencionavam o açúcar. A extração do caldo da cana, assim como seu emprego para produzir “bebidas inebriantes”, marcou o início da sua presença nas sociedades humanas. Segundo as pesquisas mais recentes, a Saccharum officinarum, espécie de cana dominante no mundo, é uma gramínea originária da região onde hoje se encontra Papua Nova Guiné, na zona tropical do Oceano Pacífico, onde deve ter sido domesticada por populações tribais há mais de 7.000 anos. Não se sabe com precisão como ela se propagou na direção da Índia e da China, mas por volta do século IV a.C ela era cultivada nessas regiões, inclusive com a manufatura do açúcar em escala reduzida. No século III a.C. fabricava-se na China, a partir da cana, um produto sugestivamente identificado pelos ideogramas “pedra” e “mel”.
O primeiro grande impulso para transformar a cana de açúcar em um dos ícones do mundo moderno – provavelmente a planta cujo cultivo tenha produzido os maiores impactos sociais e ecológicos globais – foi a sua disseminação para a Bacia Mediterrânica a partir do século X. Um movimento que ocorreu através dos circuitos que conectavam a expansão árabe entre a Índia e a Europa. O açúcar da cana passou a ser produzido no Norte da África, no sul da Península Ibérica e no sul da Itália. Um mercado de escala reduzida, mas com ganhos significativos, começou a ser criado no mundo ocidental, voltado para o ornamento culinário dos muito ricos e para algumas práticas medicinais.
A partir do século XV acontece um segundo impulso inovador, que ampliará enormemente o volume da produção e o alcance social do seu consumo. De tal forma que no século XIX o açúcar deixará de ser uma preciosidade para transformar-se em um produto de primeira necessidade para os trabalhadores e a classe média dos países em processo de urbanização e industrialização. Um consumo freqüentemente associado com a difusão do café, do chá e do chocolate., que o antropólogo Marshall Sahlins chamou de “drogas suaves” da modernidade.
Ilustração da cana-de-açúcar em manuscrito árabe de história natural |
Do ponto de vista geográfico, esse novo impulso foi marcado pela expansão da cana em direção às ilhas e áreas continentais banhadas pelo Oceano Atlântico. É nesse contexto que o açúcar veio a adquirir um alcance histórico global de primeira grandeza. A industria açucareira do Atlântico será responsável pela invenção da primeira “commodity” agrícola, ou seja, um produto cuja escala de produção e a cotação dos preços são definidos pelo mercado global. Uma produção que, ademais, terá um grande impacto sobre a ecologia das paisagens e a ecologia do consumo no mundo moderno.
Para entender o desenvolvimento dessa nova etapa é preciso considerar as características biológicas da planta e as especificidades físicas do produto. A ecologia original da cana de açúcar é profundamente tropical. Essa caracterização delimitou o campo da sua difusão geográfica. A história das disseminações de plantas não se dá por arbítrio exclusivo da ação humana, pois interage necessariamente com a diversidade de condições ecológicas do planeta. Os colonizadores portugueses, em seu pragmatismo estratégico, vieram aprendendo essa lição. Foi o caso, por exemplo, do fracasso da introdução do trigo, uma espécie de clima temperado, no Nordeste do Brasil. Com o tempo eles se especializaram em introduzir no Brasil espécies originárias dos trópicos asiáticos e africanos, que encontraram nas latitudes desse grande território condições similares às de sua origem e muito mais propícias ao seu sucesso.
O clima quente do Mediterrâneo aceitou a aclimatação da cana, mas de forma limitada. O pleno florescimento da produtividade da planta ocorreu quando ela voltou ao seu entorno tropical, através de sua introdução em ilhas como a Madeira e as Canárias, ganhando posteriormente uma intensidade muito maior no Brasil e no Caribe. É claro que os fatores ecológicos não explicam tudo, apesar de serem uma das partes essenciais do processo histórico. A grande aceleração da produção de açúcar nas florestas tropicais do “novo mundo” está igualmente relacionada com um impacto social de enorme alcance: servir de principal estímulo para a construção do escravismo moderno.
Na confluência de vários fatores, foi no espaço dos territórios atlânticos que o modelo de produção com monoculturas e trabalho escravo gerou o maior impacto na ecologia das paisagens. A plantações de cana marcaram o início de uma destruição mais extensa das florestas tropicais, além de serem o veiculo da constituição de novas paisagens culturais dominadas pelos engenhos. Desde o início da agricultura, especialmente no contexto das civilizações complexas surgidas nos últimos sete mil anos, o desflorestamento tinha se concentrado nas regiões temperadas. Até hoje mais de 60% do desflorestamento global aconteceu em florestas temperadas e savanas arbóreas. O desmatamento tropical é um fenômeno moderno, que atingiu o seu auge no século XX. A expansão das plantações de cana impulsionou a destruição sistemática de florestas tropicais em diversos espaços geográficos marcados pela expansão econômica européia. O Brasil e algumas ilhas do Caribe, como Cuba e Jamaica, se tornaram os símbolos desse processo. Mas ele se alastrou para várias outras regiões tropicais do planeta, como nas Ilhas Maurício, Indonésia, Filipinas, Hawai e Fiji.
No caso do Brasil, que até hoje é de longe o maior produtor mundial – seguido pela Índia e pela China - a transformação de muitas paisagens regionais foi verdadeiramente radical. A força da escrita de Gilberto Freyre em seu livro Nordeste, de 1937, apresentou a entrada da cana na região como “um conquistador em terra inimiga, matando as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo os animais e até os índios, querendo para si toda a força da terra”. Mais de dois séculos antes, em 1711, o jesuíta Antonil, em seu “Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas”, já havia descrito a formula sintética do canavial como um impiedoso conquistador ecológico: “feita a escolha da melhor terra para a cana, roça-se, queima-se e alimpa-se, tirando-lhe tudo o que podia servir de embaraço”. A floresta tropical com toda a sua diversidade, aos olhos dos produtores, representava apenas um “embaraço” para o avanço da cana.
É importante não sermos anacrônicos no julgamento dos agentes do desflorestamento tropical na formação do mundo moderno. Naquele contexto cultural e ecológico, onde as matas pareciam infindas, eles fizeram uso dos fatores de produção com os quais contavam, montando um sistema bastante eficaz de produção. As variedades de cana introduzidas de fora estavam livres das doenças e parasitas que as atacavam em seus lugares de origem. Os solos da região, especialmente o massapé, revelaram-se propícios. A chuva abundante e continua dispensava a necessidade de irrigação. As cinzas da biomassa queimada da Mata Atlântica fertilizavam o solo, dispensando a necessidade de adubação. O esgotamento dos solos, após alguns anos de uso, era enfrentado com novas queimadas e o avanço horizontal da fronteira econômica. Mas o impacto da industria do açúcar nas florestas foi mais amplo do que a abertura direta de terras para o plantio. Para cada quilo de açúcar produzido, cerca de quinze quilos de lenha eram queimados nas grandes fornalhas que alimentavam os enormes caldeirões onde o caldo da cana era cristalizado. Para purgar o açúcar nas moendas utilizava-se cinza de madeira, em muitos lugares retirada dos manguezais. O conjunto da infraestrutura estava calcado ou na madeira ou em produtos cuja produção requeria o uso de lenha em fornalhas, como tijolos, telhas e cal. O açúcar para exportação era acondicionado em caixas que também provinham das árvores.
Os impactos diretos na paisagem devem ser relacionados com um impacto igualmente marcante no outro extremo da cadeia econômica do açúcar: a ecologia do consumo. O sabor adocicado esteve presente na culinária do mundo pré-moderno de forma muito limitada, através do uso pontual de mel, de sorgo doce, de frutas etc. Mas o açúcar representou uma verdadeira revolução no processo de edulcoração da comida. Por ser fácil de armazenar e transportar, além de adoçar de forma quase neutra, sem modificar fortemente o sabor da comida, como no caso do mel, o açúcar da cana tornou-se quase hegemônico. Apenas o açúcar de beterraba possui propriedades físicas semelhantes. Mas, após crescer com força na produção européia do século XIX, chegando a gerar 65% do volume de açúcar consumido mundialmente em 1900, a beterraba veio perdendo fôlego no século XX diante do vigor resistente da velha cana tropical, representando hoje não mais do que 30% do consumo total.
É difícil avaliar todas as implicações sociais e ambientais da presença do açúcar da cana na ecologia do consumo contemporâneo. Quais as conseqüências do consumo global de mais de 160 milhões de toneladas, contra apenas 8 milhões de toneladas no início do século XX? O que representa todas as derivações econômicas e culturais de um consumo médio anual de 23 kg, em uma escala que vai de um mínimo de 8 kg em Bangladesh para um máximo de 66 kg em Israel? Como avaliar o efeito da combinação entre o açúcar e as bebidas energéticas (como o café) que estimulam a atividade dos corpos humanos no ritmo de vida frenético da civilização urbano-industrial? Como equacionar o resultado histórico do cortejo de delícias gustativas que o açúcar gerou, associado ao crescimento epidêmico da diabete, das caries dentárias e da obesidade ?
De toda forma, a disseminação da sensação doce na boca tornou-se um dos traços culturais distintivos do mundo da globalização. Mas qualquer historiador que considere todos os componentes da ascensão do império ecológico do açúcar - incluindo os desflorestamentos, as escravidões e as chamadas “doenças da civilização” – não poderá deixar de notar o lado amargo, por vezes demasiadamente amargo, do reino da doçura.
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