sábado, 12 de janeiro de 2019

Mairi ou Belém Tupinambá: 403 anos

por Aldrin Moura de Figueiredo *

Belém do Pará ou Mairi Tupinambá completa 403 anos. Tem Brasão e tem memória. Não sabíamos, no entanto, dessa data até a primeira década do século XX, porém desde o fim do século XIX, historiadores e diplomatas reviraram os arquivos brasileiros e europeus até encontrarem esse 12 de janeiro de 1616. Diversos nomes podem ser lembrados nessa proeza, mas os mais importantes são o Barão do Rio Branco que encorajou e financiou as pesquisas, Manoel Barata que organizou a documentação, e Theodoro Braga que deu cor ao tema diversas vezes. Antes disso, o Brasão d´Armas de Santa Maria de Belém era a grande questão. Era tradição europeia fincar o padrão em velhas e novas terras. 

Brasão da cidade de Belém 


 Nossos ônibus, os retratos dos prefeitos, nosso carnê de IPTU, tudo isso vem adornado com esse brasão. Trata-se de uma proeza da heráldica. O mito de origem está na primeira versão desse emblema, feito por Bento Maciel Parente (1567-1642), capitão-mor do Pará entre 1621 e 1626. Perdido, a notícia desse escudo ficou guardada na biblioteca do Antigo Convento do Carmo em Braga, Portugal. Em 1825, o gosto pelas marcas da nobreza nos registros da história, caro aos intelectuais do romantismo brasileiro, levou Paulo José da Silva Gama, barão de Bajé (1779-1826), a mandar reproduzir em tela a descrição do brasão. 



No final do século XIX, vários artistas e intelectuais se debruçaram sobre essa peça, entre eles o próprio Theodoro Braga e, antes dele, o francês Maurice Blaise (1868-1945), que atuou como artista e professor de desenho na última década do século XIX em Belém, cuja pintura hoje adorna a sala do prefeito. Grosso modo, trata-se de um brasão esquartelado e tudo nele o liga ao Velho Mundo e tenta-se apagar o passado indígena da cidade Tupinambá: O primeiro quarto, em azul, ostenta os braços com flores e frutas e a legenda Ver est aeternum – Tutius latent, alusivos à natureza do rio Amazonas e à geografia escondida do rio Tocantins. 

P. Sellier, Índios da foz do Amazonas (grav. Bertrand, c.1898)

O segundo, um castelo de prata com um colar de pérolas, distintivo da nobreza, do qual pende a quina portuguesa com cinco castelos de ouro em escudo azul, enfatizando a fidalguia de Castelo Branco, o fundador da cidade. A estrada em amarelo que dá acesso ao castelo alui o caminho que devem seguir os sucessos do herói da tela – o da obediência à Coroa de Portugal. 

Casal vestido de índios caçando patos. Porcelana pintada. Casa Vista Alegre, Portugal, c. 1895.

O terceiro representa um sol-poente em céu prateado, referindo a hora em que Castelo Branco ancorou na baia do Guajará. A legenda Rectior cum retrogradus, indica que o comandante esperou o desembarque para o dia seguinte. O quarto traz os ícones de um boi e uma mula num prado verde à margem de um rio, com as divisas Nequancam minima es, em alusão a Belém da Judéia, inspiradora do nome da futura capital do Pará, da qual dissera o profeta que não seria a menor de todas. 



Theodoro Braga, A fundação da Cidade de Belém do Pará, ol/s.tela, 1908


Porém, esse brasão ajudou a esconder outra memória: a Belém Tupinambá, da qual pouco se fala, embora ao longo tempo os Tupinambá estivessem em tudo, na comida, no bibelô e na aparelhagem do tecnobrega. Antes da chegada dos portugueses em janeiro de 1616, os Tupinambá chamavam de Mairi ao local onde hoje está o núcleo urbano de Belém. O antropólogo Manuel Nunes Pereira (1892-1985) registrou no seu compêndio de narrativas indígenas Moronguetá, que os índios do Rio Negro, na primeira metade do século XX, guardaram na memória um nome que vinha desde os tempos coloniais – Mairi . 

O termo já havia sido registrado em outros compêndios e vocabulários amazônicos. O conde Ermano Stradelli (1852-1926), conhecido folclorista, fotógrafo viajante ítalo-brasileiro, que realizou expedições à Amazônia nas últimas décadas do século XIX, recolhendo relatos de mitos dos povos indígenas, em especial entre os Uanana, anotou o termo Mairi, no vernáculo nheengatu, como sendo “cidade”, e seus habitantes como “mairiuára” e “mairipora”. O médico manauara Alfredo Augusto da Matta (1870-1954), por sua vez, no seu Vocabulário amazonense, dá ao termo Mairi o significado de “velha”. Ancestralidade não lhe falta em memória e identidade. Parabéns Belém, pelos 403 anos. Não adianta, tua face índia não vai morrer.

* Aldrin Moura de Figueiredo é historiador, professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará. Autor dos livros ´Os vândalos do apocalipse e outras histórias: arte e literatura no Pará dos anos 20´ (2012) e ´A cidade dos encantados: pajelanças, feitiçarias e religiões afro-brasileiras na Amazônia, 1870-1950´ (2009).

3 comentários:

Talita disse...

👏👏👏👏👏

Diego Cabano disse...

É regozijador encontrar material para estudo e conhecimento de uma versão real da história de Belém, ou melhor, Mairi. Posicionar e dar destaque à ancestralidade indígena, é respeitar, fidedignamente, a história da cidade e a formação da sociedade belenense. Obrigado, professor Aldrin.

Anônimo disse...

Outra tradução de Mairi é “Rio do francês” (mair - francês + i - rio).
Parabéns pelo texto.